ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | Denis e Kechiche - o cinema intercultural e a memória de sentidos |
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Autor | Catarina Andrade |
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Resumo Expandido | Laura Marks, em seu livro The Skin of the Film, define o cinema intercultural (intercultural cinema) como um cinema que aponta para um contexto que não pode estar confinado a uma única cultura e sugere que os diretores interculturais são os que se identificam com mais de uma cultura e podem possuir mais de um repertório cultural (MARKS, 2000: 6-8). Diante disso, pretendemos confrontar dois filmes do cinema francês contemporâneo, Minha Terra África, 2009, de Claire Denis e A Esquiva, 2003, de Abdellatif Kechiche, no sentido de compreender de que maneiras as imagens por eles construídas, multissensoriais, estabelecidas a partir de uma memória de sentidos, podem dialogar e contribuir para um cinema francês que queremos denominar intercultural.
Tendo esses filmes como corpus principal para a discussão, buscaremos entender de que forma o cinema intercultural se faz dispositivo de representação de uma possível história cultural e da memória. Nessas obras, o corpo, enquanto matéria, tem função fundamental, de resistência, de reconhecimento, e a língua também é protagonista. Corpo e língua “falam” diferentes linguagens e se complementam, pois, quando a língua se torna frágil em uma dificuldade comunicacional –tanto devido a diferenças de idiomas como a de registro de um mesmo idioma– o corpo ganha mais força. Os filmes reconhecidos como intercultural são trabalhos que partem das novas formações culturais nos centros metropolitanos ocidentais, resultados de trânsitos globais: imigração, exílio e diáspora. Grande parte dos personagens subalternos do cinema de Denis e Kechiche é proveniente da África, onde a França teve um significativo número de colônias. Vítimas do colonialismo e de sistemas produtivos cuja base é a desigualdade, são indivíduos forçados a conviver entre duas ou mais culturas, a adequar suas identidades, religiões, línguas. Em contrapartida, eles mantêm o vínculo com suas raízes e tradições. O resultado do encontro entre a antiga e a nova “casa” é uma identidade “mista”, “híbrida”, que deve atender a, pelo menos, duas linguagens culturais, e de um indivíduo “isolado, exilado ou alienado, colocado contra o pano-de-fundo da multidão ou da metrópole anônima e impessoal” (HALL, 2003:32). Em Minha Terra África percorremos as terras vermelhas da África juntamente com Maria, uma branca francesa, um corpo branco num continente negro. Um corpo que aparentemente nunca pertencerá a esse continente, que nunca se ajustará a ele. Uma mulher à deriva, deriva por vezes contemplativa, como na cena em que está na mobilete percorrendo suas terras, ou quando está absorta em pensamentos observando a paisagem pela janela de um veículo. As oposições culturais, econômicas, políticas, étnicas, ressaltadas por Denis, apresentam-se nas imagens dos corpos, nas oposições entre os corpos negros e brancos. Além dos sujeitos, há também uma grande relevância da própria matéria, uma matéria que nos parece silenciosa, estática, mas que na maioria das vezes é ativa, inquieta. O fim do filme marca consigo o fim da matéria, a morte, o vazio da matéria e, assim, parece restar apenas a memória da matéria. A Esquiva narra a história de um grupo de adolescentes de diferentes origens étnicas, vivendo na periferia parisiense. Sendo todos alunos de uma mesma escola, alguns deles se preparam para apresentar uma peça de teatro de Marivaux, Le jeu de l’amour et du hasard, para os pais, os professores e os outros colegas. Apesar de acompanhar algumas das características dos filmes de banlieue, como as tensões que se estabelecem na periferia em relação a um centro dominante, o filme revela-se por enfocar as oposições dessas tensões no universo da linguagem. Por intermédio da obra de Marivaux, da justaposição da linguagem do século XVIII a uma linguagem contemporânea e da alternância de registros linguísticos, Kechiche busca mostrar que imaginário o centro tem da periferia, ao tempo em que retrata uma periferia, de certa forma, autônoma em relação ao centro opressor. |
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Bibliografia | BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Vol. I. São Paulo: Brasiliense, 2000.
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