ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | Filme-teoria: "Com ou sem ordem?" de Abbas Kiarostami |
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Autor | Alexandre Wahrhaftig |
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Resumo Expandido | Jacques Aumont (2008), em um artigo recente, questiona a possibilidade de um filme ser um ato de teoria. Ele analisa, metodicamente, em que consiste o teorizar e como que tal forma de elaboração do pensamento poderia surgir no cinema. Não se trata, logicamente, de buscar como um filme apresenta uma teoria que existe para além dele (filmes didáticos sobre teorias que o precedem). E também não é o caso de se refrear na constatação de que o cinema "pensa", termo um tanto vago que serve a múltiplos propósitos. Aumont apresenta, enfim, algumas formas pelas quais certos filmes se assemelham a um ato de teoria. Entre elas, o autor cita a possibilidade de filmes serem "estudos sistemáticos" (como certos filmes estruturais) ou a possibilidade de eles tomarem o próprio cinema como objeto de questionamento.
Nossa proposta aqui é investigar como um curta-metragem de Abbas Kiarostami se assemelha a um ato de teoria nos moldes sugeridos por Aumont. O filme em questão é "Com ou sem ordem?" (1982), realizado no Irã sob os auspícios do KANUN (Instituto para Desenvolvimento Intelectual da Criança e do Adolescente), órgão estatal de caráter educativo. O filme é composto pela apresentação de esquetes em que uma determinada situação social (ou em uma escola, ou no trânsito de Teerã) é vivida "com ordem" e "sem ordem" sucessivamente. Pautado pela repetição, a organização do filme é, como diz Jean-Marc Lalanne (1997), próxima de uma equação matemática ou de uma experiência de física. Já vislumbramos aqui certas marcas do estilo de Kiarostami que só mais tarde serão cristalizadas. Encontramos aqui um dispositivo com regras fixas que se desenvolve de maneira serial, característica de certos filmes estruturais norte-americanos que já foram associados por Bernardet (2004) a Kiarostami. Aqui, já haveria um primeiro ponto de contato entre a ideia de "ato de teoria" como "estudo sistemático" e o serialismo do filme. O curta ultrapassa a doutrinação pró-ordem para transformar-se também em um ato de teoria sobre o próprio cinema e, mais especificamente, sobre as relações do cinema com o real. Ao mostrar uma fila de crianças entrando em um ônibus primeiro ordenadamente e depois desordenadamente, o discurso do filme entra em "crise". Ouvimos, enquanto assistimos às crianças se acotovelando para entrar no ônibus sem ordem, o diretor e o fotógrafo discutindo que o plano está demorando muito. Escutamos Kiarostami falar que é preciso mostrar que a ação leva tempo e que eles (a equipe) não estão trapaceando: verdadeira aspiração baziniana de respeitar a integridade do plano-sequência. Um pouco mais adiante, no filme, apresentam-se situações no trânsito urbano. Em uma delas, vemos uma criança atravessar a rua ora aguardando o sinal fechar e ora em meio à passagem desordenada dos carros. Na primeira vez, a cena é decupada em diversos planos e, na segunda, é mostrada por apenas um único plano geral. Aqui, o filme coloca um outro problema: é quase como se ele expusesse o fato de que, em meio ao caos do trânsito, a única forma de ordenar a cena é por uma mutilação da unidade espaço-temporal. A realidade resiste se a filmarmos em plano-sequência e profundidade. Nosso intuito é aprofundarmo-nos no filme investigando um duplo movimento que ele apresenta ao se constituir como ato de teoria: ao mesmo tempo em que apresenta uma estrutura rígida, serial, que remete ao filme estrutural, ele é também uma demonstração do embate, em termos bastante bazinianos, do cinema com o mundo. E tudo isso, sob a aparência de um modesto filme pedagógico e institucional para crianças. |
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Bibliografia | AUMONT, Jacques. "Pode um filme ser um ato de teoria?" In: Educação e Realidade, 33(1), jan/jun 2008, p. 21-34.
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