ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | ¨Rua de Mão Dupla¨ : O gosto no estabelecimento de distinções |
|
Autor | renata meffe |
|
Resumo Expandido | Abordar, conhecer e representar o outro, posicionando-se em relação a ele, tem constituído um dos principais processos embutidos na produção cinematográfica em geral e, mais especificamente, no documentário. Para aproximar-se do outro em ¨Rua de Mão Dupla¨ (2002), o diretor Cao Guimarães lança mão de um dispositivo engenhoso que faz com que os personagens falem de si ao imaginarem o perfil de outros personagens. Seis pessoas que vivem sozinhas, divididas em três duplas, trocam simultaneamente de casas por 24 horas, munidas de câmera de vídeo para registrar a experiência. Cada participante é convidado a elaborar uma ''imagem mental'' do outro a partir da convivência com seus objetos pessoais e universo domiciliar.
Ao lançar luz sobre o processo adotado por cada personagem para definir, a partir de pistas procuradas no lar, as formas de viver de outro personagem, ¨Rua de Mão Dupla¨ termina por tratar muitas das questões trabalhadas por Pierre Bourdieu, referentes à construção de gostos e estilo de vida, à exclusão como questão cultural, à cultura como modo de vida e construção de identidade, ao consumo de bens simbólicos e à relação entre gostos de liberdade e de necessidade. Assistindo à ¨Rua de Mão Dupla¨ com as teorias de Bourdieu em mente, especialmente as enfatizadas em ¨A Distinção¨, nos damos conta de que o filme poderia perfeitamente servir como um ¨manual audiovisual prático ilustrativo¨ de algumas das dinâmicas sociais relativas ao gosto discutidas pelo autor. Bourdieu discute o tema da construção de legitimidades simbólicas apoiadas na questão do gosto e como as preferências terminam por promover a exclusão, não podendo ser desvinculados do âmbito da violência simbólica. Os gostos não seriam dons ou predisposições naturais, mas aquisições obtidas em entornos como o familiar e o escolar, resultando no habitus: disposições apreendidas que incorporadas parecem ser parte natural das pessoas. Não por acaso, os gostos musicais e literários estão entre os principais indícios buscados pelos personagens do filme com a intenção de conhecer a personalidade do dono da casa visitada. A própria residência (sua decoração, disposição, estrutura), além do vestuário e das pistas que apontam para hábitos alimentares, completam, juntamente com as fotografias, a lista dos elementos mais perscrutados pelos personagens em ¨Rua de Mão Dupla¨. Uma das qualidades de ¨Rua de Mão Dupla¨ é justamente ser capaz de reordenar a maneira como a auto exposição se dá, trazendo-a para fora dos limites convencionais. Acostumados que estamos com a estrutura dos telejornais e reality shows e cientes do modo como se espera que se dê nossa representação, costumamos construir diante das câmeras imagens de nós mesmos auto conscientes, condizentes com as prováveis expectativas existentes em relação a elas. Os personagens de ¨Rua de Mão Dupla¨ ao voltarem suas percepções ao outro, estando menos atentos, portanto, ao processo de revelação de si mesmos, afrouxam um pouco os mecanismos de autocensura. Outro mérito contido no jogo proposto pelo diretor é o de fazer-nos cientes da nossa própria participação no movimento de espelhos, marcado por identificações e rechaços. No papel de espectadores também lidamos com alteridades. Baseados em nossas percepções e sistemas de valores - todos elementos construídos - julgamos os gostos construídos daqueles que avaliam esses mesmos elementos de outrem. Adentramos igualmente as casas e as fabulações sobre as casas tirando conclusões a partir de indícios, em uma dinâmica que acaba por dizer mais sobre nós, do que sobre os personagens ou sobre o diretor. Esta postura, evidentemente, não adotamos apenas em relação ao filme de Cao Guimarães. Ela é parte da maneira através da qual nos relacionamos com qualquer produto cultural ou bem simbólico (seja ele, por exemplo, um filme ou um artigo sobre um filme), em um modus operandi que implica, o estabelecimento constante de relações de poder. Tal como defendia Bourdieu. |
|
Bibliografia | BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico, Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil, 1989.
|