ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | Imagens que resistem à morte: tempo e memória em "E agora? Lembra-me" |
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Autor | Mariana Duccini Junqueira da Silva |
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Resumo Expandido | “Há dois anos, comecei a anotar num mapa os dias bons e os dias maus. Desisti ao fim de um mês. Eram quase todos maus”. No curso de 2011, os dias maus que soterravam os bons davam forma ao cotidiano do realizador português Joaquim Pinto, que há duas décadas convive com o vírus do HIV e da hepatite C. Registrar, à maneira de um diário, o percurso de um tratamento com drogas experimentais, a desagregação do corpo físico e certa confusão mental causadas pelos efeitos colaterais dos medicamentos representava não apenas uma forma de permanecer vivo, mas sobretudo de conferir compleição a memórias e percepções que pereciam diante da iminência da morte.
Convertidas em filme, as notas diárias de Pinto exorbitam a dimensão do registro autobiográfico e do diarismo. Entrelaçam temporalidades, imbricando os tempos da doença, da juventude do realizador, dos amigos mortos, das materialidades históricas pretéritas e atuais, do próprio cosmos. Revela a condição de uma identidade enunciativa que, algo descentrada, só se perfaz de modo relacional. “E agora? Lembra-me” (2013) é o trabalho do “lembrar-se do agora”, em que a situação de um sujeito em risco de desaparecimento legitima o olhar reflexivo quanto ao momento de seus contemporâneos. Eivado tanto de multiplicidades quanto de dissensões, esse exercício de rememoração compõe-se com imagens e sons que sobreviverão à morte, mas nem por isso reconhece na aventura da vida uma experiência humano-centrada. A transitoriedade e a recência do homem em relação a outras formas biológicas desmobilizam o “antropocentrismo renitente” (Comolli, 2008) que supõe um olhar que se dirige do indivíduo ao mundo. As memórias autobiográficas ultrapassam a mera inscrição em primeira pessoa em um documentário-processo que, pelos recursos estéticos da duração (como olhar que se detém), do comentário em voz over (cuja inflexão tanto respalda um lugar de autoria quanto remete aos limites, nunca obliterados, desse posicionamento) e da heterogeneidade de registros audiovisuais, tematiza as existências em curso: não “a vida”, mas o “em vida”. É assim que “E agora? Lembra-me”, ao mesmo tempo em que contempla a Aids em sua semantização histórico-cultural (“cada século tem sua doença”), enfatiza a dimensão biológica do HIV e de outros micro-organismos em seus modos de interação com a vida. São essas formas microscópicas que historicamente vêm levando a melhor, reinventando-se para permanecer. O gesto do filme, nesse sentido, desmonta a ilusão de preponderância da espécie humana (tanto mais nuançada e posta em questão quando das imagens que expõem a agressão à natureza, o colapso das economias europeias, a falência do sistema público de saúde, o apelo a drogas sintetizadas que substituem os ancestrais alteradores de consciência). Mas não se trata, tampouco, de uma descrença radical na potência humana. O filme é eivado de intensidade ao aludir ao amor entre o realizador e Nuno Leonel, seu companheiro, com quem compartilha a vida e o trabalho; ao trato com os quatro cachorros criados pelo casal; ao reencontro com amigos de longa data e à celebração daqueles que já não existem (caso, entre outros tantos, do também realizador João César Monteiro); à amizade com vizinhos como Deolinda, velha aldeã que conhece os segredos das plantas. Todo um mundo que logo estará convertido em matéria de memória, aspecto em que o cinema de Joquim Pinto se entrelaça com a vida: não a monumentaliza, mas a envolve com algum desejo de permanência. Registros da ausência iminente que se presentifica em filme. O trabalho memorialístico alcança em “E agora? Lembra-me” uma dimensão coletiva. Inscrito em primeira pessoa, desliza entretanto das eventuais limitações do dispositivo que engendra o documentário (o diário íntimo ou o caderno de notas) para se lançar a uma reflexão sobre o tempo e a impermanência. Afirma singelamente a vida, imiscuindo-se em seus ritmos na duração e na composição de cada um dos planos. |
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Bibliografia | BERGSON, H. Matéria e memória: ensaio da relação do corpo com o espírito. 2ª.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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