ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | Sob o risco da memória |
|
Autor | Carla Ludmila Maia Martins |
|
Resumo Expandido | Nos últimos cinco anos, a cinematografia brasileira viu crescer o número de documentários que tematizam a ditadura militar: "Diário de uma busca" (Flávia Castro, 2010), "Uma longa viagem" (Lucia Murat, 2011), "Marighella" (Isa Grispum Ferraz, 2012), "Os dias com ele" (Maria Clara Escobar, 2013), "Em busca de Iara" (Mariana Pamplona e Flávio Frederico, 2014) e "Retratos de identificação" (Anita Leandro, 2014) são alguns exemplos. Na trama entre passado e presente, cada filme enfrenta a seu modo o desafio de trabalhar com o que possibilita e ameaça sua realização, sob o risco da memória: esta que tem uma face que recupera o vivido e outra que o esquece, transforma, reinventa.
O termo “risco”, tal qual adotado aqui, conota dois sentidos não-excludentes: um perigo e um traço. O traço da memória, seu riscado errático e lacunar, deixa qualquer documentarista em apuros dada sua “fragilidade essencial”, na expressão de Gagnebin (2006), fragilidade decorrente da tensão entre o real (a experiência vivida a ser “recuperada” contra o esquecimento) e sua representação (a experiência rememorada, recriada, retraçada em palavras, imagens e sons). Em filmes dedicados a acontecimentos traumáticos como é o caso da ditadura, esta tensão se amplia e nunca se resolve, tornando-se tão necessária quanto problemática. O antes e o agora, o ausente e o presente precisam encontrar, nas obras, modos de articulação que possibilitem, a um só tempo, constatar a perda e resistir a ela, enfrentando o dano irreparável que assombra tais narrativas, mais que uma cicatriz, uma chaga aberta. Antes de retornar ao passado, cabe aos filmes torná-lo visível, sensível, pulsante no presente. Para dar conta da tarefa, as realizadoras contam apenas com rastros, vestígios, escombros de um tempo escuro e doloroso. Diferentes modos de trabalhar tais rastros serão analisados comparativamente nas obras, de acordo com dois procedimentos principais: o uso de material de arquivo – fotografias, cartas, documentos oficiais, notícias de jornal, filmes antigos – e a realização de entrevistas, ocasião para a constituição do testemunho. Se o arquivo oferece uma garantia indicial, o mesmo não ocorre nos testemunhos dos sobreviventes. Para estes, não há garantias e a exigência passa a ser se colocar diante da dor do outro (ou da própria, tal qual em obras autobiográficas como Os dias com ele, Uma longa viagem e Diário de uma busca), encarando o vazio que a dor inflige à experiência. Em alguns casos, como acontece distintamente em "Marighella" e "Em busca de Iara", o impulso realizador trata de preencher este vazio, através de procedimentos de filmagem e montagem que primam pela coesão entre os fragmentos, costurando falas e depoimentos sem deixar espaço às dúvidas. Em outros, contrariamente, trata-se de expor ou mesmo sublinhar o vazio, valorizando o silêncio e a hesitação em sua força expressiva. É o que se nota em "Diário de uma busca", "Os dias com ele" e "Retratos de identificação", por exemplo, filmes bem diversos entre si, mas que guardam em comum um certo modo de expor a lacuna e a impossibilidade como condição do trabalho. Em Benjamin, lemos sobre a pobreza da experiência: os sobreviventes voltam mudos dos campos de batalha, não há como narrar o que viram e sofreram, nenhum comum será novamente passível de transmissão. Só é possível, desse modo, “uma narração nas ruínas da narrativa, uma transmissão entre os cacos de uma tradição em migalhas” (GAGNEBIN, 2006: 53). O narrador benjaminiano tem gesto miúdo e obstinado, como um catador de detritos cuja missão é não deixar nada se perder, nem mesmo, ou sobretudo, o insignificante. Inspirados por Benjamin, buscamos refletir sobre como alguns filmes agem contra o risco, primando pela coesão discursiva de modo a suprir os vazios com informações e relatos; enquanto outros trabalham com o risco, junto dele, deixando que algo da impossibilidade constitutiva da memória atravesse o filme, como condição de sua realização. |
|
Bibliografia | BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
|