ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | RITORNELO E REVOLUÇÃO: O MOMENTO MUSICAL EM ANGELOPOULOS E JANCSÓ |
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Autor | JOCIMAR SOARES DIAS JUNIOR |
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Resumo Expandido | Em uma das cenas mais marcantes de A Viagem dos Comediantes (O Thiasos, 1975) do realizador grego Theo Angelopoulos, a personagem Electra (Eva Kotamanidou) presencia um verdadeiro “duelo musical” desenrolar-se no interior de uma taverna. Neste plano-sequência, ao invés da agressão física, o embate político entre os partidários da direita monárquica e os representantes da esquerda comunista é travado musicalmente: de maneira alternada, os grupos entoam canções embebidas de seus fervorosos discursos ideológicos, à capela. A disputa termina com a derradeira expulsão dos comunistas desarmados, após um tiro para o alto dos monarquistas. Estes, numa valsa da vitória, passam a ocupar completamente o espaço antes dividido. Petrificada ao pé da porta, Electra assiste a tudo, tal qual à um espetáculo musical. Esta espécie de “momento musical”, em que através de uma performance articulam-se as questões políticas e dramáticas da narrativa, é recorrente em toda a filmografia de Angelopoulos.
Encenação similar é utilizada pelo cineasta húngaro Miklós Jancsó em alguns de seus filmes. Perto do final de Salmo Vermelho (Még kér a nép, 1972), dezenas de camponeses revoltosos descem uma colina abraçados e cantando sobre o triunfo da luta dos trabalhadores, comemorando as recentes conquistas da revolução. Aos poucos, soldados desarmados vão se incorporando ao grupo, abraçando-os e engrossando o coro da canção. Surge música instrumental que aos poucos se revela diegética: a banda dos militares passou a acompanhá-los. Após o discurso de um dos líderes do movimento, segue-se um grande plano geral no qual uma multidão de camponeses dança ao som da banda que ainda está a tocar. Os militares voltam a se misturar com o povo e confraternizar, porém, após o soar de uma trombeta, estes abandonam a festa, recuperam suas armas e formam um grande círculo ao redor dos trabalhadores, encurralando-os. A aparente cooperação revela-se uma emboscada, o momento musical é cruelmente interrompido: o plano termina com os corpos dos camponeses desabando inertes ao chão, após a enxurrada de tiros desferida covardemente pelo pelotão. O conceito de ritornelo é definido em linhas gerais por Deleuze e Guattari como “todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais” (2005, v. 4, p. 129) e no qual a música possui um papel de destaque nas construções, desconstruções e reconstruções de território simbólico. Um exemplo de ritornelo dado pelos autores é a melodia que o pássaro canta enquanto está construindo seu ninho – mas também é ritornelo todos os agenciamentos que rodeiam este fenômeno, como buscar os galhos que serão matéria-prima da estrutura que será edificada. Partindo deste conceito, é possível sugerir que a música cantada à capela nestes filmes é utilizada como forma primordial de encenação dos processos de re-des-territorialização (ritornelos) dos personagens. Segundo Richard Dyer (2002), no musical americano, há a oposição constante entre as partes não-musicais (representativas, que se assemelham à “realidade”) e as partes musicais (não-representativas, utópicas). O entretenimento é alcançado com êxito através da “sensação de utopia” dos números musicais, que resolvem os conflitos da narrativa através de respostas utópicas aos mesmos. Através de mecanismos de distanciamento – seja a ausência de acompanhamento sonoro, a desdramatização, ou mesmo interrupção da performance – Angelopoulos e Jancsó criam uma “imagem musical falhada”, incompleta (“failed musical image”), cujo desconforto produzido gera “indeterminação e significados não-fixos” e permite “a geração de leituras críticas e pensamento criativo” (Herzog, 2010). Assim, a sensação de utopia que poderia ser experimentada é desestabilizada, questionada, e por fim substituída por uma sensação contrária, a de distopia. Convida-se não ao entretenimento, mas antes de tudo à reflexão, através do olhar crítico dos cineastas. |
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Bibliografia | BORDWELL, David. “Angelopoulos, or Melancholy”. In: Figures Traced in Light: On Cinematic Staging. University of California Press, 2005.
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