ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | A vida das imagens: documentário, invenção e arquivos pessoais |
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Autor | LUÍS FELIPE DUARTE FLORES |
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Resumo Expandido | A história do cinema apresenta muitos exemplos de obras que problematizam, formal ou tematicamente, a suposta fronteira entre arte e vida, como The countryman and the cinematograph (1901), Nanook, o esquimó (1922), Sherlock Jr. (1924), Conflitos de amor (1950), Le journal de David Holzmann (1967), Triste trópico (1974) e A rosa púrpura do Cairo (1985). Esses filmes foram submetidos, via de regra, à rigidez dos gêneros e tradições, segundo os quais documentário e ficção seriam formas cinematográficas estritamente distintas ou excludentes entre si. Godard ironiza essa separação em A chinesa (1967), quando um personagem se refere a Meliès como o primeiro documentarista (que filmava eventos cruciais do seu tempo, como expedições submarinas ou a viagem à lua), e aos irmãos Lumière como os primeiros cineastas de ficção (pois reencenavam eventos cotidianos).
Nos últimos anos a prática e a crítica do cinema parecem encontrar no documentário um terreno privilegiado para a experimentação artística e a reflexão sobre certa zona de indistinção entre realidade e ficção, cujas fronteiras são diluídas em obras como Santiago (2007), Jogo de cena (2007) e A cidade é uma só? (2011). Isso não quer dizer que o gesto ficcional seja menos importante, e que somente no registro documental possam emergir figuras e emoções das esferas do real. Antes, é preciso tomar a sério a incerta existência do mundo ficcional, pois, como afirma o filósofo Emanuele Coccia, “apenas uma história capaz de se tornar testemunho do que não foi [...] poderá salvar aquilo que não é, e não será possível esquecer”. Nesse contexto, a fabulação cinematográfica é a potência que permite a todo cineasta, documentarista ou não, convocar as vidas (passadas, presentes, futuras) possíveis na duração do filme, e renovar a experiência (imaginária) da história e da memória. Os filmes Já visto, jamais visto (Andrea Tonacci, 2013) e Quand je serai dictateur (Yaël André, 2013) se estruturam através da combinação de imagens de arquivos variadas, partindo dos universos pessoais dos cineastas para compor ensaios fortemente marcados pela reinvenção ficcional e pelo espírito da infância. A obra de Tonacci se faz de sentimentos e momentos íntimos – especialmente com o filho e com amigos – registrados por ele mesmo ao longo de quarenta anos, e articulados quase que naturalmente pela montagem, sem uso de intervenções textuais, como cartelas ou offs. Já o filme de Yaël André se constrói com centenas de bobinas amadoras, de 8mm ou Super 8, datadas dos anos quarenta até o presente, ressignificadas pela edição heteróclita e pelo texto ficcionalizante enunciado em voice-over. O documentário se torna, nos dois casos, uma fábrica de formas sensíveis que se combinam para representar ou reiventar experiências dos sujeitos. Nesse entrecruzamento possível, entre modos de viver e de representar, entre experiência e pensamento cinemático, decorrem consequências potentes nas relações entre filme, espectador e realidade. Segundo Coccia, “se toda experiência coincide com o ato de recuperá-la, [então] viver significa reviver. Re-viver se torna, ao mesmo tempo, o paradigma da experiência do documentarista, da operação do filme sobre o real, e da experiência do espectador face ao filme, mas também à própria vida”. O filósofo italiano, que vem desenvolvendo uma leitura fundamental da relação do homem com as imagens, problematiza a proibição da filosofia ocidental sobre o reconhecimento de qualquer autonomia ontológica das imagens, e defende que “a vida sensível em todas as suas formas [...] pode ser definida como a vida que as próprias imagens esculpiram e tornaram possível”. Esta comunicação pretende analisar de que modo as obras escolhidas tecem e destecem, sem cessar, histórias que foram ou poderiam ter sido, e que passam a compor – através da invenção, da fabulação, da impressão subjetiva, da figuração das vidas possíveis – mundos povoados por corpos e gestos que sobrevivem nas imagens. |
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Bibliografia | AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. São Paulo: Hedra, 2012.
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