ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | Filmando aparências sem destinatário: um cinema não antrópico? |
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Autor | Luís Fernando Lira Barros Correia de Moura |
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Resumo Expandido | A imagem dos animais no cinema lança uma rede de problemas univitelinos: virar a câmera para o bicho significa deixar de filmar o humano? Significa promover políticas não humanas? Ou filmar, e portanto produzir espectatorialidades humanas, seria permanentemente ter o humano como destino histórico e epistemológico? Raymond Bellour traça um contraste panorâmico entre as estratégias de figuração dos bichos em tendências estilísticas gerais do cinema hollywoodiano clássico e dos cinemas francês e italiano do pós-Guerra: no primeiro, o animal seria inscrito sob uma “figuração antropológica”, convocado como símbolo mediador entre as realidades históricas pré e pós-civilizatórias, sobretudo para produzir induções quanto ao que distinguiria natureza e cultura nacional. Nos segundos, por sua vez, a figuração do animal como símbolo entraria em tensão com a convocação do seu corpo como produtor de intensidades, no sentido mesmo do “devir-animal” de Deleuze e Guattari: poderíamos desejar que o corpo do animal não humano se discernisse para tornar-se “puro movimento, linha de fuga, intensidade e desafio de todos os sentidos”. Que se filmasse uma batalha entre símbolos e intensidades na qual enquadrá-lo seria agora gesto de uma “perspectiva ontológica” de duplo horizonte de efeitos; “centrada tanto sobre a definição da natureza da imagem como sobre aquela da essência da subjetividade humana, de seu mistério metafísico mais interior”.
Notem-se os tantos desígnios humanos em jogo nas mais heterogêneas referências históricas: lutar contra forças naturais indômitas em Robert Flaherty, forjar o ponto de vista do vento em Joris Ivens, encontrar as ovelhas em Luís Buñuel ou em Agnès Varda, amar o burro em Robert Bresson, parafrasear a beluga em Pierre Perrault, fazer pássaros revoarem para aterrorizar a intimidade em Alfred Hitchcock. Ainda que a figuração de animais não humanos nas imagens de cinema tenha historicamente convocado seus corpos – ou a representação destes – sob diversos estatutos expressivos e com variados fins narrativos e discursivos, poderíamos lembrar postulados recentes do filósofo Fabían Ludueña Romandini para afirmar que o cinema, em seu território próprio de competências expressivas, dificilmente seria capaz de escapar de um forte finalismo antrópico: aquele que, mais do que promover antropocentrismos, produz descentramentos não mais que superficiais do humano para, finalmente, explicar este e seu mundo. Segundo Ludueña, toda a filosofia ocidental, e mesmo o pós-estruturalismo do século XX, padeceriam deste princípio por uma contingência teleológica. Apontamentos de Bertrand Prévost podem nos ajudar a imaginar uma perturbação cênica de tal antropia. A radicalidade de seu pensamento consiste em, a partir de aliança produtiva entre bibliografias da zoologia e da estética, promover uma inversão no pensamento darwiniano que, por fim, abalará a noção de espectatorialidade. Prévost especula se a aparência dos animais não humanos no mundo não seria condição para seu metabolismo e para sua sobrevivência, mas o contrário: eles metabolizam, sobrevivem, para aparecer; aparecem não para alguém, mas para a própria Expressão – se “são soberanamente expressivos, é que eles portam em si o paradoxo de não serem (necessariamente) feitos para serem vistos”. São “aparências sem destinatário” e, neste sentido, “aparências que não constituem em nada um espetáculo”. A finalidade de sua vida é a pura intensidade da aparição no mundo, portanto: como se metabolizassem como condição para “que a particularidade que se realiza na ligação com o mundo e a ‘autopresentação’ fossem, durante certo tempo, uma duração no mundo”. Perguntamos então: pode o cinema – duração – ambientar cenas em que, despindo-se das armadilhas simbólicas, a imagem se desnude e acolha aparências sem destinatário? Pode o cinema perseguir a pura Intensidade, a pura Expressão, a pura aparência do bicho, outro radical que, agora, recusa-se a ser Outro, se não apenas o Um da Expressão? |
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Bibliografia | BELLOUR, Raymond. “From hypnosis to animals”. In: Cinema Journal. Austin (EUA), v. 53, n. 3, mar 2014.
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