ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | A sombra e a (i) materialidade da figura humana cinematográfica |
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Autor | Edson Pereira da Costa Júnior |
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Resumo Expandido | Na história da pintura ocidental, a representação da sombra foi correlata à figuração do corpo humano. Do início do período cristão até o século XV, sob a influência do discurso religioso, que preconizava a valorização da alma em detrimento do corpo, dos assuntos celestiais em oposição aos terrenos, os pintores não tinham interesse ou liberdade pela representação fiel do mundo e dos seres reais, abdicando, por exemplo, das leis da física e da óptica. Testemunhamos isso pela ausência de sombra nas telas deste período: quando a figura humana interceptava uma fonte de luz, não deixava em torno de si uma silhueta ou qualquer rastro indicando que seu corpo opaco havia sido iluminado. A sombra, que é exclusiva de tudo o que é vivo, material, terreno, só recuperaria sua importância em meados do século XV, quando o desejo de se ater à observação da natureza mais do que às antigas fórmulas de representação refletiu na importância dada à perspectivação e à precisão orgânica da figura humana, em sua anatomia e movimento. A partir de então, a sombra se tornava primordial para fornecer uma "carne" à imagem do homem (STOICHITA, 1997).
Assim como a pintura, o cinema se serviu amplamente da sombra. Uma numerosa confraria que inclui diretores como F. W. Murnau, Josef Von Sternberg, Fritz Lang, Jacques Tourneur, Orson Welles, Ingmar Bergman, Andy Warhol, Philippe Garrel, Peter Emanuel Goldman, Philippe Grandrieux, Pedro Costa, e nomes do expressionismo alemão e do cinema noir, desdobrou a sombra em suas diferentes finalidades, seja em termos expressivos, seja como traço estilístico, parte de um virtuosismo pictórico ou simplesmente presença irmanada com a luz. Tendo isso em vista, o objetivo desta comunicação é o de refletir sobre um papel da sombra geralmente negligenciado nos estudos de cinema, o de matéria fundamental para a composição e a materialidade da figura humana. A materialidade à qual nos referimos não diz respeito ao suporte da imagem cinematográfica, marcado, em diferentes níveis, por uma impalpabilidade, perda de relevo e espessura, ausência de tactilidade e rugosidade se comparado ao da imagem da pintura (DUBOIS, 2004). O ponto sobre o qual almejamos refletir concerne à economia figurativa, aos aspectos plásticos que ora conferem “presença” e ilusão de solidez ao corpo humano, preenchendo sua natureza indicial com uma “carne” visível ou simbólica, ora conduzem a uma abstração, diluindo o resíduo imagético do corpo em um eflúvio, um personagem sem substrato material ou uma figura diáfana – o que, na pintura ocidental, por muito tempo foi sinônimo da morte ou do pertencimento a uma esfera mágica, sagrada (LANEYRIE-DAGEN, 1997). A fim de analisar a presença da sombra e sua interferência para a constituição da figura humana, iremos nos concentrar em filmes de dois expoentes do cinema contemporâneo: Pedro Costa, em Juventude em marcha (2006), e Philippe Grandrieux, em Sombre (Sombra, 1998). A escolha dos filmes é motivada pelas concepções diametralmente opostas que eles assumem na representação da figura humana a partir da modulação da sombra sobre os corpos. De um lado, Costa parte de uma questão estética e se destina a um problema ético; do outro, Grandrieux encontra o princípio e o fim de seu filme na própria natureza da imagem cinematográfica, como um ensaio sobre suas propriedades plásticas. Ademais, trata-se de obras que dialogam com a produção de outros diretores nucleares no campo com o qual lidamos: Juventude em marcha ecoa um modo de lidar com a sombra que deve aos filmes de Tourneur, enquanto Sombra remete ao pictórico das imagens de Murnau. O debate proposto, cujo eixo central é a sombra – e indiretamente a luz, e o claro-escuro –, retoma o problema da “verdade da representação”, que marcou a pintura ocidental, e se vale das noções de presença em Bazin e dos estudos sobre a composição da figura humana em Jacques Aumont, Jean Douchet e Nicole Brenez. |
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Bibliografia | BAZIN, André. O que é o cinema? Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
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