ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | Observando alguns filmes de L. Lumière a partir de P. P. Pasolini |
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Autor | Marcelo Carvalho da Silva |
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Resumo Expandido | Desde as novas pesquisas que recuperaram (entre o final dos 1970 e início dos 1980 do século passado) os primeiros filmes do cinema, aprendemos a não mais enxergar este cinema como “primitivo”, ou como um simples balbucio de imagens animadas antes da institucionalização dos procedimentos de montagem. Com as pesquisas de Tom Gunning, André Gaudreault etc., esses filmes ressurgiam indissociáveis à ambiência sociocultural urbana do final do século XIX. Tais pesquisas foram vitais para a reavaliação do início do cinema, mas talvez devêssemos igualmente levar em conta alguns aspectos propriamente imagéticos de tais produções, notadamente, nos primeiros filmes de Louis Lumière. Especificamente, desejamos cotejar alguns desses filmes com o que pensa Pier Paolo Pasolini acerca da tendência onírica e bárbara primordial da imagem cinematográfica.
Contrapondo-se ao antigo cinema clássico, Pasolini apostava no reaparecimento da poesia no cinema a partir de uma ambiência polifônica (no entrecruzamento entre as “vozes” do personagem “problemático” e do autor esteticamente “delirante”) e polimórfica (nos procedimentos formais de filmagem e de montagem que denunciavam uma consciência autoral) que tornasse indistinta e mesmo irrelevante a dicotomia entre o objetivo e o subjetivo. A poesia do cinema adviria da tensão e do desequilíbrio constantes desse sistema chamado por Pasolini de “subjetiva indireta livre”, permitindo ao cinema ascender a complexas relações formais a partir de conteúdos e procedimentos oníricos e bárbaros (PASOLINI, 1982; DELEUZE, 1985). No entanto, o cinema de poesia estaria condicionado não apenas a uma ruptura a ser levada a cabo nos anos 1960, mas igualmente ao retorno a uma situação anterior, tida como mais elementar e fundamental do cinema, pois “(...) na sua origem o cinema foi uma língua poética" (PASOLINI, 1986, p. 103). Pasolini não define precisamente a que período refere-se, mas provavelmente tem em mente filmes que escapavam à tradição prosaica “tal como historicamente se formou nos seus primeiros decênios” (PASOLINI, 1982, p. 142). No entanto, ao referir-se a Um Cão Andaluz, de Luis Buñuel e Salvador Dali, credita sua qualidade poética não a uma disposição intrínseca à imagem cinematográfica, mas ao “prontuário sinalético do surrealismo” (PASOLINI, 1982, p. 142). Sem cairmos novamente numa estigmatização fácil e anacrônica, perguntamo-nos em que sentido a qualidade bárbara (poética, diria Pasolini) do cinema poderia ser encontrada nos primeiros filmes de Lumière. Não seria, por certo, pelos procedimentos fílmicos tomados de forma mais livre nestes filmes, mas pela abertura na imagem de um cinema que ainda não se submetia ao circuito sensório-motor do cinema clássico narrativo. É não haveria razão para procurarmos qualquer ancestralidade da “subjetiva indireta livre” nos filmes do período inicial do cinema: não há ali personagens constituídos a partir dos quais se poderia estabelecer uma polifonia, já que o mecanismo sensório-motor ainda por se consolidar impede a constituição de processos de subjetivações para além dos prolongamentos afectivos e ativos incipientes e desiguais presentes na imagem (DELEUZE, 1985). A imagem desses filmes é bárbara porque o circuito sensório-motor encontra-se ali incompleto. No entanto, tal incompletude não se define por aquilo que lhe faltaria ou por pretensas deficiências relacionadas a esta falta, mas pelo onirismo materialista de que tal imagem seria capaz de guardar. Parece-nos evidente que um barbarismo e um onirismo se fazem presentes em filmes de Lumière como Bicycliste e Démolition d’un Mur. Mas o barbarismo pré-circuito sensório-motor da imagem do cinematógrafo ganha contornos ainda mais pronunciados em Barque Sortant du Port, cujo onirismo é ressaltado pela incursão casual e não programada do universo material em constante movimento, pesadelo não psicológico, mar convulso que ameaça engolfar tanto a embarcação quanto seus tripulantes. |
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Bibliografia | COSTA, Flávia Cesarino. O Primeiro Cinema – Espetáculo, Narração, Domesticação. Rio de Janeiro: Azougue, 2005.
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