ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | A iconoclastia fissurada de Esplendor do Martírio (1974) de Sergio Péo |
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Autor | Rubens Luis Ribeiro Machado Júnior |
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Resumo Expandido | A cena pregnante do agressor, momento capital em Esplendor do Martírio, filmada de um só fôlego, sem cortes, se incorpora de modo problemático nesse artefato de agitprop peculiarmente obscuro. Fragmentado e composto de imagens um tanto auráticas de jovens contracenando com uma cidade carregada de ambiência simbólica, entrecortado de lacunas e cisões, teria o filme visado com isto provocar discussão com o público? Vêm superpostas a velha e a nova cidade em atmosfera de sortilégios, o Rio antigo, do Centro e da Lapa, já entrecortado pelas obras colossais da ditadura civil-militar, arquitetura estatal em torno da av. Chile (eco recente de Allende, para quem conhece o Rio?), os bancos nacionais, a Petrobrás, a nova catedral, tudo conjugado às artérias de Copacabana. Em estilhaçada “geografia criativa”, a fragmentação urbana do Rio mostra uma quase ritualística de martírio, sob sinais de alguma conjuração pouco clara, nem tanto exotérica ou hermética assim: tarô, sangue no asfalto, linhas divisórias, punhal, luvas plásticas, jovens cabeludos tombados, impossível não ver alusão ao regime repressivo. Numa destas aparições figurava com ar surrado o próprio autor, acorrentado a um poste, a posição arquetípica dos pulsos amarrados. Gesto da famosa estátua de São Sebastião, da Praça da Glória, no Catete?
Sob o coeso influxo do som, execução da famosa Money, rock progressivo do Pink Floyd, vemos desfilar corpos e espaços de uma intrincada e abrupta metrópole, uma dilacerada São Sebastião do Rio de Janeiro. Urbe retalhada — e sem suturas possíveis fora do sacrifício em curso? E sem esplendores fora do corrente martírio? Parece faltar parafuso nessa unidade precária e acidentada de Explendor do Martírio. Interessava menos ao filme saber da estátua agredida antes de inaugurada, qual seria o “soldado desconhecido” da vez, que episódio evocaria, seu significado historicista se ofuscava pelo da inauguração, que lhe recobria do caráter genérico e epidérmico (Riegl, 1984) de uma celebração militar. Embora provoque interesse sua singularidade, o filme sobrepõe um significado realçando a vivência presente, a do gesto opressor de afirmação cívico-militar. O filme parece apostar na obscuridade do presente como possibilidade de interrogação. Compõe entretanto um objeto curioso, mônada reticente (Rochlitz, 2003) e arrevesada, exprimindo em viés singular a barbárie vivida por uma travadíssima geração, na tentativa obstinada de configurar a cesura, ela-mesma, daquela sua experiência histórica, apartada do grande protagonista do sentido revolucionário de seu gesto libertador, a massa oprimida em sua condição de classe, presente porventura de braços cruzados no início da fita, assistindo na praça um ex-escravo cuspindo labaredas. O páthos fílmico se põe a extravagar desde este início, acentuado pela música Money, e sua pletora controversamente melancólica, solicitando àquelas imagens de dolorida articulação “uma apreensão do tempo histórico em termos de intensidade e não de cronologia” (Gagnebin, 1994). Conta-se que o filme é então projetado em sessões de sindicato, universidade, cineclube ou comunidade de base, e sem programação publicada, para não atrair a censura. Na publicidade boca-a-boca se sabia da presença da equipe na sessão para eventual debate. Sessões irrepetíveis decerto, de um aqui e agora que, ao longo de sua história registrada, tampouco logrou perpetuar-se. Como em geral na história superoitista, dado que as cópias eram de má qualidade, projetavam-se quase sempre os originais, logo engavetados por alarmantes danos de uso, o medo de extravios, de censura, danos e acidentes de má projeção ou translado — tudo concorria para uma difusão colada, a circulação de película e realizador inseparáveis. A cultura cinematográfica no Brasil, que alcançou alta repercussão artística, instituindo-se nas últimas décadas com crescente mentalidade industrialista, sobretudo dos anos 1980 para cá, fez questão de esquecer todo esse romantismo amadorístico. |
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Bibliografia | Adorno, T. W. Minima moralia. Rio: Azougue, 2008.
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