ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | Ressonâncias entre cinema e ritual em ‘As Hipermulheres’ |
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Autor | Bernard Belisário |
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Resumo Expandido | Há pouco mais de uma década temos visto surgir no Brasil uma vasta produção fílmica que dá a ver e ouvir o mundo ameríndio de uma forma completamente nova. Muitos destes documentários produzidos no âmbito de oficinas de formação audiovisual, ou realizados autonomamente pelos cineastas indígenas, se dedicam a filmar as festas e rituais de seu povo. Nestes ‘filmes-rituais’, a câmera precisa encontrar para si um lugar que não é nem aquele dos espectadores da aldeia, nem aquele dos sujeitos que estão diretamente envolvidos nas ações e performances ritualísticas. A análise que aqui propomos busca caracterizar um dos modos como as câmeras de Takumã e seus colegas do Coletivo Kuikuro de Cinema se lançam no ritual de modo a filmar as danças e os cantos das ‘Jamugikumalu’, as Hipermulheres míticas.
A partir de uma breve descrição da forma dos cantos, atenta às maneiras como componentes rítmicas, melódicas e fonéticas compõem um complexo jogo de repetições e variações, encontramos um caráter fortemente circular (Wisnik 1989) que aponta para uma experiência temporal bastante distinta daquela do tempo linear e narrativo das cenas em que sujeitos filmados e câmera colocam em cena uma espécie de “cotidiano” da aldeia. E mesmo nestas cenas, quando os cantos são transmitidos, rememorados ou ensaiados, é possível perceber que o próprio corpo daquele que canta se modifica, o canto transforma sua ‘mise-en-scène’. Utilizamos aqui a noção de ‘mise-en-scène’ tal como vem sendo discutida pelo teórico e crítico Jean-Louis Comolli (2008), ou seja, à relação entre aquele que filma e aqueles que são filmados, este “fato compartilhado” que é também um encontro (filmado) entre o corpo e a câmera – dimensão documentária de toda cena cinematográfica. Conforme argumentamos acima, o corpo daquele que canta se modifica, passam a fazer parte daquele agenciamento que o canto constitui. Nas performances ritualísticas de ‘As Hipermulheres’, o balanço pendular dos braços, a percussão dos pés e o movimento coreográfico das mulheres são então componentes deste grande sistema de repetições e variações que, em última instância, é o próprio ritual (Belisário 2014). E quando a câmera passa a habitar este outro tempo e espaço fabricados pelos cantos e pelas danças no ritual, é o próprio filme que parece se transformar. O ritual se lança em direção ao filme com suas forças e vetores visuais e sonoros, assim como o filme se lança no ritual instaurando ali um outro ponto de vista e de escuta. O termo que os Kuikuro utilizam para se referir à ação de filmar é ‘ahehi’. Tradicionalmente, este termo designa “uma modalidade específica de representação que inclui o desenho de mapas, diagramas, gráficos ou cartas” (Franchetto 2010: 62). Partimos então desta noção para analisar como a câmera elabora seu “traçado” no pátio da aldeia enquanto as mulheres executam suas performances rituais. Ao compararmos a trajetória da câmera e o movimento coreográfico nas várias cenas em que as mulheres dançam e cantam, verificamos o fenômeno da ‘ressonância’ entre eles, o que não significa que descrevam um mesmo movimento. A diferença entre os trajetos apontam para uma diferença entre estes próprios corpos em jogo no ritual, cujas afecções e percepções implicam maneiras próprias de entrar em ressonância neste agenciamento. O que estes filmes-rituais realizados pelos próprios índios parecem propor são métodos e modos de elaboração da ‘mise-en-scène’ cinematográfica capazes de fazer inscrever ali as forças e vetores em jogo em seus rituais. Nossa análise buscou então identificar e descrever alguns deles, partindo do canto como uma espécie de elemento catalisador das interações entre filme e ritual (mesmo quando o ritual não passa de uma sutil maquinação dos corpos em cena). A ressonância surge então como uma figura capaz de caracterizar estas diversas maneiras como os distintos corpos (dentre eles a própria câmera) são mobilizados neste regime da intensidade (Tugny 2011) próprio ao ritual. |
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Bibliografia | BELISÁRIO, Bernard. 2014. As Hipermulheres: cinema e ritual entre mulheres, homens e espíritos. Dissertação de Mestrado. PPGCOM/UFMG.
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