ISBN: 978-85-63552-17-4
Título | Desvio e transgressão: a fabricação da alteridade em Freaks |
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Autor | João Victor de Sousa Cavalcante |
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Resumo Expandido | Freaks tem início com um enigma: um grupo de observadores curiosos admira uma criatura em uma caixa. A suposta aberração não é mostrada até o final do filme, vemos apenas a reação de espanto e medo do grupo que olha, como espectadores de um museu de itens exóticos. Após essa primeira cena, a trama começa de fato, como um flashback, e narra a historia de um circo itinerante cujas atrações incluem, dentre outras, uma bela trapezista, um brutamontes de força física descomunal e um grupo de pessoas com visíveis deformidades físicas, tais como gêmeas siamesas, um homem sem braços e pernas, cujo corpo se resume ao torso, uma mulher barbada etc. Tidas como aberrações (em inglês, freaks), eles exibem sua singularidade monstruosa no circo como atrações exóticas, ora assustadoras, ora fascinantes.
Dirigido pelo cineasta Tod Browning e lançado em 1932, o filme nos mostra as relações subjetivas que ocorrem nos bastidores do circo em que as “aberrações”, ou “monstros” convivem com pessoas sem deformidades aparentes. Tomando como ponto de partida o mobiliário singular do longa metragem, discutimos o corpo monstruoso como um elemento de intersecção sígnica, que desestabiliza a representação e põe em xeque noções pretensamente harmônicas de identidade. Na relação com o monstruoso, a subjetividade não se assenta no caráter estável e agregador de uma identidade, mas sim na relação conflituosa e fragmentária da alteridade, em que o “outro” é sempre fabricado, configurando-se não apenas como limite, mas também como condição para o “eu”. O corpo do monstro evidencia o caráter fronteiriço do ser, como signos que deliram em zonas limítrofes. Para Jean-Louis Comolli (2008), o cinema herda da magia a tarefa de conjurar e domesticar o desconhecido. Ao exibir corpos monstruosos, o longa de Tod Browning traz à superfície elementos ocultos, da ordem do estranho, do visceral. Esses elementos entram em conflito com a ordenação binária estabelecida pela cultura e desagregam dicotomias elementares tais como natureza e cultura, normal e patológico, homem e monstro. O que percebemos em Freaks é que o significado da monstruosidade desprega-se de seus significantes, acionando conflitos intersubjetivos e políticos dentro do pequeno universo do circo (universo itinerante, movediço, em que tanto o espaço quanto seus moradores são transitantes desenraizados). Tais conflitos nos revelam, também, outras faces assumidas pela monstruosidade que reside não apenas nos corpos, ou nas divergências da linguagem, mas também como um elemento moral e politico. Gerados de acordo com uma demanda cultural específica, os monstros são corporificados a partir de tabus e angústias coletivas e em relação a um modelo pré-estabelecido de homem. Michel Foucault (2013) define o monstro a partir da ideia de infração de ordem jurídico-biológica levada ao seu ponto máximo. Em sua forma e existência, ele viola as leis da sociedade e da natureza, uma vez que não há parâmetro legal nem esquema médico que sejam capazes de punir ou curar a monstruosidade. Esta desordem, como argumenta Bataille (2014), no entanto, é necessária e prevista dentro da dinâmica interna dos sistemas culturais. A transgressão que a monstruosidade implica, sugere fissuras, desarticulações e crises na cultura, que evidenciam o caráter limítrofe do sujeito. Partindo dessas assertivas, nos voltamos para o filme Freaks no intuito de desenvolver reflexões sobre a monstruosidade na cultura e a fabricação da alteridade implicada nessa relação. No trabalho, relacionamos tais questões com produções cinematográficas contemporâneas, nas quais essas discussões estão presentes, mas que já se anunciavam com muita complexidade e potência no filme de 1932. Tomamos como âncora conceitual, além dos autores citados acima, o pensamento do filósofo espanhol Eugenio Trías, cuja discussão sobre o limite nos é fundamental. Além de autores que se dedicam a pensar o tema da monstruosidade como José Gil, Jeffrey Cohen e Noël Carrol. |
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Bibliografia | BATAILLE, Georges. O Erotismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
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