ISBN: 978-85-63552-21-1
Título | Violência Gratuita: espectador-personagem, desprazer e reflexão |
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Autor | Thiago Henrique Ramari |
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Resumo Expandido | Depois que a imagem-movimento e, consequentemente, o cinema clássico entraram em crise, devido a apropriações ideológicas que culminam em Leni Riefenstahl, os filmes modernos se tornaram o espaço primordial da experimentação. Segundo Deleuze (1990), cineastas de vários países passaram a fazer uso da imagem-tempo, deram diferentes atribuições aos personagens e investiram na reflexão de uma verdade do cinema - e não mais de um cinema da verdade. Essa valorização do novo, que caracterizou diversos movimentos cinematográficos, reverbera na produção atual, possibilitando mais contribuições.
Violência Gratuita (1997), do austríaco Michael Haneke, alinha-se de maneira única ao neorrealismo italiano para promover uma experiência-limite na audiência. Se o movimento encabeçado por Roberto Rossellini, Vittorio De Sica e Luchino Visconti transformou seus personagens em personagens-espectadores, com o objetivo de refletir sobre a realidade italiana após a Segunda Guerra Mundial, conforme relata Deleuze (1990), Haneke realiza uma inversão, tornando seus espectadores em espectadores-personagens, a fim de que avaliem criticamente o consumo que fazem de imagens de violência como entretenimento. É preciso lembrar que no cinema clássico os personagens estavam ligados a um circuito de ações e reações, que Deleuze (1983) define como esquema sensório-motor. Este esquema era a matéria-prima das imagens-movimento, caracterizadas por uma representação indireta do tempo, ou seja, uma montagem lógica que garantia a impressão de realidade. A partir do neorrealismo italiano, entretanto, uma nova condição se desenvolve: os personagens não mais agem e reagem aos estímulos, mas ficam diante de situações atuais ou virtuais, observando-as e escutando-as a fim de compreender o que se passa nelas. São situações óticas e sonoras puras, que abrem espaço ao pensamento e à imagem-tempo - a representação direta do tempo. Haneke estende essa transformação à audiência, concebendo espectadores-personagens. Em Violência Gratuita, ele cria uma estratégia narrativa híbrida, com características do cinema clássico e do cinema moderno, para contar a estória de uma família feita refém e assassinada por dois jovens. Com base na cartografia realizada por Wheatley (2009), nota-se que, nos primeiros 29 minutos, há o predomínio de imagens-movimento. A plateia é levada assim a tomar o filme como um suspense comum, que estimula sustos, medos e expectativas de que as vítimas se salvem. Contudo, no 87º plano, essa relação muda: um dos criminosos olha diretamente para a câmera e pisca para a audiência, impondo a esta última o papel de cúmplice dos homicídios. Esse recurso, o aparte, repete-se três vezes, nos planos 138, 283 e 324. Dito de outra forma, o primeiro aparte rompe a cápsula diegética, permitindo que o seu conteúdo vaze e contamine o espaço ocupado pelo público; e a sua repetição anula qualquer possibilidade de promoção de um lapso de consciência no espectador, tão comum aos filmes clássicos que visam ao entretenimento, forçando-o a viver aquilo que Haneke (2014, p. 575, tradução nossa) chama de “a verdadeira medida da violência na realidade”, ou seja, “medos profundamente desconcertantes de dor e de sofrimento”. É por esse motivo que Violência Gratuita causa desprazer ao público. Vendo-se no universo diegético como cúmplice de assassinos, o espectador-personagem tem como que uma paralisia, assim como os personagens-espectadores do neorrealismo italiano: “[...] a situação em que está extravasa [...] e lhe faz ver e ouvir o que não é mais passível, em princípio, de uma resposta ou ação” (DELEUZE, 1990, p. 11). O único caminho é permanecer diante dessa situação ótica e sonora pura que é o filme e pensá-lo apropriadamente, o que culmina em uma reflexão sobre o consumo da violência como entretenimento, seguindo os passos de Sontag (2003). |
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Bibliografia | DELEUZE, Gilles. Cinéma I: l’image-mouvement. Paris: Les Éditions de Minuit, 1983.
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