ISBN: 978-85-63552-21-1
Título | Fábulas fílmicas do povo: A cidade é uma só? e Branco sai, preto fica |
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Autor | Júlio César Alves da Luz |
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Resumo Expandido | Sob o cenário comum do aparthaid social que assinala a cisão entre Brasília e o seu entorno, A cidade é uma só? (2011) e Branco sai, preto fica (2014) são filmes nos quais Adirley Queirós – goiano de nascimento, mas que viveu desde a infância na Ceilândia – busca o avesso de exclusão que marca a história de um povo banido da capital federal, segregado ainda hoje nas periferias de suas cidades-satélites. Questionando, de entrada, já pelo próprio título, o verso de um jingle que teria sido veiculado em Brasília no início dos anos 1970, o qual afirmava – sob o contexto da Campanha de Erradicação das Invasões – que “A cidade é uma só!”, o filme de 2011 empenhava-se por mostrar como, pelo contrário, tal campanha aprofundou ainda mais o abismo que dividia a cidade. Afinal, a “erradicação das invasões” resultou na remoção das pessoas pobres e seus barracos das imediações da cidade, um violento processo de higienização da capital que levou à expulsão daquela população marginalizada, deslocada para uma região mais distante, onde se formaria a Ceilândia.
Ali, no território de exclusão de sua periferia, é onde vivem os personagens de ambos os filmes, um povo proscrito cuja condição, já em Branco sai, preto fica, chega ao limite do impedimento de entrar em Brasília. Assim como no filme anterior, Adirley volta ao passado, ao histórico caso do baile de black music de 1986 que acabou em tiroteio, quando a polícia invadiu o lugar e gritou justamente as palavras de que o cineasta se serve para intitular obra. O aparthaid social explode, assim, intimamente ligado à questão racial, e a cesura que vinca a partilha desigual da cidade acirra-se na guetização desse povo expulso da pólis. Porém, se à fratura que divide a cidade e o povo corresponde uma história oficial que reitera as exclusões ao silenciar os testemunhos dos povos oprimidos, o trabalho de Adirley Queirós consiste justamente em “escová-la a contrapelo” (BENJAMIN, 1994) a fim de, revolvendo-a, recontá-la a partir de baixo. Se o trabalho do diretor, sobretudo em A cidade é uma só?, transita tanto entre o documento e a ficção, nesse movimento o seu interesse é o de um questionamento que, aos documentos de uma história “oficial” – isto é, daquela história que, segundo Jacques Rancière, “é feita com os vestígios que os homens de memória haviam decidido em nos legar” –, opõe uma história interessada pelos “testemunhos mudos da vida ordinária” (RANCIÈRE, 2004, pp. 166-167). Trata-se de um esforço no sentido de um movimento contra-histórico, de modo a chegar àquele outro lado de que falava Walter Benjamin, à “tradição dos oprimidos”, e que, para tanto, contra a hipóstase de uma história mal contada, reescreve-a pelos meios próprios da arte, pela fábula cinematográfica (RANCIÈRE, 2013). Um trabalho cuja força política reside justamente aí, em investir na potência reveladora da fabulação fílmica contra os discursos do poder, processos históricos e uma realidade social presente excludentes, numa estratégia que procuramos analisar no modo como constrói sua complexa trama de deslocamentos entretecendo documento e ficção, passado e presente, tensionando, nesse movimento, os sentidos de inclusão e exclusão, e questionando, dessa maneira, a fissura que está no fundamento da cidade política e do povo. |
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Bibliografia | BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de: ROUANET, Sérgio Paulo. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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