ISBN: 978-85-63552-21-1
Título | Na experiência do limite, o ser, tal qual importa: The Act of Killing |
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Autor | Patricia Rebello da Silva |
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Resumo Expandido | “De resto, me é odioso tudo o que simplesmente me instrui, sem aumentar ou imediatamente vivificar a minha atividade”. Assim começa Nietzsche sua “Segunda Consideração Intempestiva”, prevenindo o leitor da lesão no conhecimento: o saber tomado como luxo, supérfluo, desrealizado como parte do contínuo histórico. Precisamos da história para a vida e para a ação, continua Nietzsche, “não para o abandono confortável da vida ou da ação” (p.5). O abandono confortável da vida e da ação permitiram Anwar Congo, antigo torturador da Indonésia, em “The Act of Killing” (2012), esquecer do cheiro do sangue, substituído pela memória do dispositivo por ele inventado para fazer o sangue desaparecer da cena do crime, um fio de arame retorcido. Apagamento de memórias ou criação de novas, numa tentativa de substituir o passado? Ou talvez seja o caso de sequer existirem memórias, e sim incômodos, sentimentos difusos que o tempo não ajuda a resolver. Não se trata mais de indagar qual a memória que se preserva da história, mas sim o que a memória escolhe preservar na história. Bem mais que a história de um passado próximo, ainda em aberto e que começa perigosamente a cair no esquecimento das narrativas cujos relatos permanecem esboçados em guardanapos usados, das “repúblicas sem histórias” (RANCIÈRE, 2012), o documentário de Joshua Oppenheimer convoca a cena de um cotidiano fantástico precisamente na riqueza dos fatos. Nos bairros miseráveis da Indonésia, em meio à criança, “que ainda não tem nada a negar de passado e brinca entre os gradis do passado e do futuro em uma bem aventurada cegueira” (NIETZSCHE, 2003), e o adulto, criatura da “narrativa de um desencontro e de uma luta entre a palavra oral e a escrita, entre o mundo do mito e o da literatura” (AGAMBEN, 2015, 174), se abre um presente em forma de fenda, um incomodo profundo de uma realidade habitada por gângsteres e paramilitares, ocupados em encenar suas próprias fantasias. “Sei de um local bom para a cena da tortura”, informa Herman Koto, paramilitar que acompanha, fiel como um lobo, o velho torturador ao longo do filme. Em “A comunidade que vem”, Giorgio Agamben, aquele que nos mostra o sentimento possível das palavras, nos fala de uma noção de “fora” que ilumina o aspecto definitivo do documentário, aquele que talvez faça as vezes de sursis para a história que está sendo contada. Em uma noção de fora, escreve, não estaria em questão um limite, “que não conhece exterioridade, mas um limiar (...) um ponto de contato com um espaço externo, que deve permanecer vazio” (p.63). Não mais uma alteridade, mas uma experiência do limite: talvez seja esse um nome provável para o incômodo. Não tão interessado em desvendar uma história do que em tornar visível o incômodo dessa experiência, intempestivos são os fantasmas a assaltar o velho torturador ao longo do documentário. Congo atravessa o filme tentando dar nome para uma certa angústia, que não encontra no espectador perdão, tampouco redenção. |
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Bibliografia | AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. |