ISBN: 978-85-63552-21-1
Título | Sergio Bianchi e a perversão |
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Autor | César Takemoto Quitério |
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Resumo Expandido | Estaria a perversão apenas confinada à proliferação de personagens perversos nos filmes de Bianchi? Ora, um dos traços mais salientes de seus filmes diz respeito a maneira com que sistematicamente o diretor expõe os defeitos, as obscenidades, as deformações e degradações das personagens e seus desejos. Em seus filmes, os de baixo, na escala social, não se apresentam necessariamente melhores do que os de cima, e os substituiriam, ou os abandonariam a si próprios, sem grande diferença, se possível. A hipótese que gostaria de testar é de que esse grande nivelamento por baixo característico de seus longas-metragens, e mais intensamente desde 'Mato eles?' (1982), não tem intenção e nem força realista, mas encenam situações tendo em vista o olhar de um Outro, no sentido de trabalhar para frustrar sistematicamente o olhar desse Outro. A maneira como Bianchi monta seus filmes, seus personagens e situações, não visa colocar o outro no lugar do Outro (HYLDGAARD, 2004). Seus personagens são objetos de manipulação e conhecimento, são instrumentos e meios para o que o diretor componha cenas que sistematicamente nivelam por baixo e degradam. Como os bumbuns do concurso, em 'Cronicamente inviável' (2000), ou os atores de Zé Maurício, em 'A causa secreta' (1994), eles são substituíveis ou simplesmente descartáveis. O mesmo contudo não pode ser dito do público que, este sim, ocupa o lugar do Outro e é chamado a assistir à exposição de degradações encenadas. As ousadias que compõem as múltiplas enunciações e situações funcionam assim como recusas da lei, tanto do bom senso estético e político do público quanto das "leis" do cinema bem feito nacional. É da repulsa, terror e do espicaçar desse Outro de que se alimentam seus filmes.
Até pelo menos 'Quanto vale ou é por quilo?' (2005), Bianchi trabalha sistematicamente para fazer ruir os alicerces e pilares da ideia de nação brasileira. Mas esse desmoronamento tem como alvo um público mais ou menos determinado: aquele em que se sedimentou uma ideia rigorosa de nação como uma comunidade imaginada, limitada e soberana, mas também, e aqui especialmente, como uma fraternidade horizontal (ANDERSON, 2006: 6-7). Mais precisamente a parcela desse público que tangencia e intersecciona os consumidores de cultura nacional brasileira, em especial o seu cinema. A hipótese que formularemos pode ser estruturada assim em torno da imagem do espelho distorcido, a de filmes feitos e refeitos para refletir distorcidamente os pressupostos obscenos desse público progressista e (a seus próprios olhos) esclarecido, que nos filmes aparece em geral figurado em uma classe média urbana. Esses pressupostos assumem duas formas fundamentais: a de uma voz e a de um olhar. O olhar se dá como uma espécie de reencenação bastarda do estágio do espelho lacaniano (LACAN, 1966: 93), em que o indivíduo se reconhece mas é repetidamente frustrado em suas aspirações narcísicas: a constituição de qualquer Eu estável – ou identificação não problemática, no plano do aparato cinematográfico – é solapada pela distorção e pela ventriloquia da agência narrativa, inviabilizando, no plano da representação, todas as relações interpessoais entre iguais. A voz materializa-se em grande medida como enunciação obscena, e em vários casos ela o é literalmente, pois se realiza como uma enunciação fora da cena. A voz, sendo mais elementar que o olhar em sua relação com um gozo ("jouissance") que parece prescindir de um suporte exterior (como uma espécie de autoafeição imediata), direciona, perversamente, o insuportável do plano imagético para o insuportável das enunciações, complementando-o. Cremos ser produtivo evitar a recusa a priori da perversão como mal absoluto ou condição irremediável, apostando em seu potencial, mesmo que limitado, de iluminar certas dinâmicas sociais brasileiras e de apontar para o seu papel necessário na constituição ou não constituição de um sujeito, ainda a especificar. |
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Bibliografia | D'AUREVILLY, Barbey. Du dandysme et de George Brummel. Edição Kindle.
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