ISBN: 978-85-63552-21-1
Título | A religiosidade ultrajada: o cinema crítico de João Cesar Monteiro |
|
Autor | Sérgio Eduardo Alpendre de Oliveira |
|
Resumo Expandido | Em As Bodas de Deus (1998), de João César Monteiro (1939-2003), o alter-ego do diretor, João de Deus, recebe da Madre de um convento uma moeda de cem escudos, como recompensa por ter salvado a vida de uma moça que se afogava. A Madre ainda lhe faz a seguinte recomendação: "mas não gaste tudo em vinho". Logo adiante, João de Deus dá cem dólares ao homem que o ajudou a carregar a moça, e satiriza a fala da Madre, que já não lhe pode mais ouvir: "mas não vá gastar em freiras". Pouco antes da doação da Madre, esta lhe diz: "Graças à sua boa ação, os anjos e serafins rejubilam no reino dos céus". João de Deus responde, causticamente: "Madre, não transforme um pequeno impulso aquático numa orgia celestial". Na despedida, a Madre profere o tradicional "que Deus o acompanhe", e João rebate, concluindo a série de provocações: "Mais vale só... que mal acompanhado". Esses são alguns momentos localizados em um determinado filme, o antepenúltimo, da carreira de Monteiro. Existem muitos outros da mesma estirpe provocadora, espalhados em obras como Veredas (1978), Silvestre (1981), O Último Mergulho (1992) ou Vai e Vem (2003), seu testamento cinematográfico, e sobretudo na trilogia com o personagem João de Deus (vivido pelo próprio César Monteiro), formada por Recordações da Casa Amarela (1989), A Comédia de Deus (1995) e o supracitado As Bodas de Deus (1998). Momentos de uma postura que pode ser chamada de anticlerical. Lucia Nagib escreveu que Monteiro "adota apaixonadamente o furor anticlerical de Bataille pela longa tendência portuguesa de tradições anticlericais e de um humor tipicamente pornográfico". (NAGIB, 2011, p. 237). Georges Bataille foi um escritor cujos ensaios e romances, segundo Carol King em verbete para o livro 501 writers, "derrubaram tabus sexuais, enquanto exploravam o conceito de sagrado dentro do êxtase dionisíaco e do erótico" (KING, 2008, p. 339). Por isso a associação entre Bataille e Monteiro feita por Nagib é totalmente justificada. A ideia de "sagrado dentro do êxtase dionisíaco e do erótico" pode ser aplicada tranquilamente aos seus filmes. Mas seria mesmo anticlerical sua obra? Lembremos que Luis Buñuel, que para muitos era anticlerical, foi homenageado pela igreja católica por seu Nazarin (1958), longa que mostrava, entre outras imagens ambíguas do clero, um padre altruísta carregando um abacaxi no desfecho. O mesmo diretor, em O Fantasma da Liberdade (1974), vai mais longe e mostra padres jogando e bebendo uísque, e no começo da carreira, em A Idade do Ouro (1930), flagra Jesus Cristo saindo de uma orgia. São provocações que justificam tal epíteto. Mas a que ponto essas provocações, que revelam um anticlericalismo da parte do diretor, não fariam parte de uma crítica maior, contra as limitações da sociedade burguesa? Não seriam tentativas de provocar as pessoas, de fazê-las pensar? Poderíamos então dizer que Monteiro, como Buñuel, não chega a ser anticlerical, apesar de preencher seus filmes com alguns momentos anticlericais? Ou o viés anticlerical estaria na frente, como motor principal das provocações dos cineastas? Monteiro, vale lembrar, exerceu por um bom tempo o papel de crítico cinematográfico. Natural que em sua obra o espírito crítico estivesse presente, como deve ser em toda grande obra de arte. |
|
Bibliografia | AREAL, Leonor. Cinema Português – Um País Imaginado (em dois volumes). Edições 70, 2009. |