ISBN: 978-85-63552-21-1
Título | ‘O HOMEM DO CADERNINHO’, OU COUTINHO PERSONAGEM DE GLAUBER EM ‘CÂNCER’ |
|
Autor | Fernão Pessoa Ramos |
|
Resumo Expandido | Talvez a participação em Câncer esteja na origem do trauma coutiniano com a escritura ou, ao menos, marque sua primeira expressão manifesta. Expressão registrada pela cena de Glauber, na qual Eduardo Coutinho repete que possui um caderninho, que escreve neste caderninho e por isso é perseguido. Mas o que tem o tal ‘caderninho’? Ele não entrega para interrogador meio policial, meio marginal (Hugo Carvana). É um caderninho que ‘não tem nomes’. Coutinho se auto-define explicitamente na primeira pessoa, neste misto de delírio profético que Glauber faz dele, transformando-o em personagem de si. A expressão da qual quer fugir resume: ‘sou teórico e tenho um caderninho’, repete seguidamente. Ao caracterizar assim seu colega cineasta, a intuição glauberiana (como é próprio das intuições daqueles que profetizam) acerta na mosca. Tanto na distensão, como na ironia. Pois Coutinho efetivamente passará o resto da vida erguendo, no que mais tarde chamará de ‘dispositivo’, um caminho para a negação da maldição que Glauber pôs em suas mãos: o caderninho. ‘Intelectual comunista’ é o estigma do personagem. Além do mais é ‘teórico’ e com um ‘caderninho’. Glauber amarra assim as mãos de Coutinho, reduzindo seu campo expressivo ao extremo. Um diretor que só escreve faz roteiros, coisa que Coutinho tinha excelência na época e Glauber o sabia. É também a atividade que mais tarde o documentarista abominará. Mas a questão toma seu volume em ponto mais abaixo. Parece ser castigo de profeta e é significativo que o faro ciclope de Glauber tenha percebido que, ao fugir do ‘caderninho’, selaria seu destino e desafio futuro. Coutinho é um cineasta que, apesar da mesma geração de Glauber, irá amadurecer tardiamente podendo, a posteriori, estabelecer a ponte entre o momento de Câncer e o cinema brasileiro pós anos 2000. Cinema que elegerá Coutinho como referência no embate com a cena, nas modalidades que delineia em seus documentários e que Câncer, em certa medida, avança. Pois o intelectual, sujeito téorico-pensador que Coutinho encarna, representa a vitória do sistema sobre a força vital. Vitória que ele passará a vida tentando apagar. É o motivo (inclusive ético) de abrir a mata cerrada das intermediações para expressão pura da potência do ‘outro’, alteridade que, para si e seu cinema, vem do campo ‘popular’. É clara a sintonia entre o desejo (que diz ser ‘neurótico’) de escapar da escrita e o personagem que vê obrigado a desempenhar. Seria neste momento que nasceria a ‘patologia’ da escritura para Coutinho, momento em que Glauber o traz para a cena de Câncer? Vamos deixar a questão em aberto, pois é composta de indagações as quais não se deve resposta. Mas a caracterização não surge gratuita. Câncer traz densidade de primeira pessoa para frente da cena. E se Coutinho já é figurado como aquele que pensa (por oposição ao que age, ou encena), será pelo fato de que o caminho da oposição se configura como dilema (ou opção). É a crosta do pensamento que vai querer romper na exposição do si próprio e na negação (‘neurótica’) de tudo que assemelhe ao intermediário, às mediações suplementares das quais escritura e caderno são modelos. Para atingir a alteridade na cena (no filme de Glauber, a respiramos sem método) é que erguerá seu dispositivo. No entanto, na própria sistematização deste (pois sem dúvida há um sistema no dispositivo coutiniano), foge da liberação e se afunda no personagem, como quem não consegue erguer a perna do pântano. Motivo de trauma, de patologia, com o qual, ainda se debaterá algum tempo antes de conseguir dar-lhe forma, na expressão estilística madura de sua carreira. |
|
Bibliografia | Aumont, Jacques. Les Limites de la Fiction. Paris, Bayard, 2014. |