ISBN: 978-85-63552-21-1
Título | A Personagem e a Cidade: Ficção e realidade em Rosetta |
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Autor | Alexandre Silva Guerreiro |
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Resumo Expandido | No cinema dos irmãos Dardenne, podemos apontar como algo constante os dilemas morais que as personagens enfrentam. Em Rosetta não é diferente, mas é preciso ir além para pensar de que maneira personagens como Rosetta são, hoje, possíveis e verossímeis, e de que modo essas personagens promovem um imbricamento do real com o universo ficcional, marcando a convergência que a mise-en-scène dos irmãos Dardenne promove. Para Philip Mosley (2002), Rosetta é produto direto da realidade social da Bélgica contemporânea. Ao apontar a memória como um constructo social, apesar de ser um ato individual, Mosley assume a mesma perspectiva de Le Goff (1990), a partir da qual podemos conceber que filmes como Rosetta são poderosos transmissores de aspectos da memória social. Nesse sentido, a personagem Rosetta surge como consequência e representação de um cenário social no qual uma jovem comprometida com o trabalho é simplesmente descartada quando chega ao fim o período do estágio. A personagem atravessa a cidade, que relega aos não-espaços os socialmente excluídos. A esse respeito, Benoit Dillet e Tara Puri (2013) estabelecem o conceito de Left-over spaces. Os autores discorrem sobre a presença e a operação do espaço no cinema dos irmãos Dardenne. Distanciando-se das análises mais usuais da obra dardenniana, que gira em torno das implicações morais, essa análise busca discutir a cidade, o concreto, a paisagem urbana e a materialidade visceral (CRANO, 2009) dos filmes dos irmãos Dardenne. A cena industrial, da qual saíram os próprios Dardenne, é o que compõe, de certa forma, a materialidade visceral da obra dardenniana. Rosetta e a totalidade dos personagens de ficção criados pelos Dardenne até agora vivem nos left-over spaces, que são as auto-estradas, as florestas, o entorno da cidade, ou estabelecem com esses locais uma forte relação. Esses espaços marginais são colocados nos filmes como espaços centrais na trama. Rosetta atravessa a auto-estrada repetidas vezes, numa espécie de ritual de passagem entre dois mundos. É dessa forma que os personagens dardennianos desfilam, mas a cenografia do real que está nos filmes é apenas uma consequência da Bélgica e do mundo atuais, que nunca resolveu o lugar dos segregados. Com efeito, é a passagem para um mundo pós-industrial, o que torna os dilemas morais dos personagens dardennianos, e em especial de Rosetta, inteligíveis e verossímeis. A locação adquire, assim, um sentido de real na medida em que, longe de funcionar como mero detalhe, ganha força de representação de uma sociedade e de um mundo que estão lá, nos arredores de Liège ou de qualquer outra grande cidade do mundo. O rol de personagens dardennianos é composto por imigrantes ilegais, pequenos criminosos, alcoolatras etc, mas que são habilmente construídos pelos Dardenne como sujeitos, sem nunca se tornarem objetos de nossa piedade. Segundo Lefebvre (1974), o espaço não é um elemento neutro, mas o resultado de uma fabricação social. Podemos avançar para as relações entre espaço e corpo, na maneira como o esfacelamento de uma continuidade do espaço social reverbera no corpo de Rosetta. Ela oscila entre o espaço e o não-espaço, entre o existir e o desaparecer, entre o ser e o não-ser. Rosetta é uma personagem possível no mundo atual que se insere na cena real da qual dois cineastas buscam captar a essência. A verossimilhança surge da habilidade narrativa dos Dardenne, mas antes, somente a cidade real poderia fornecer tamanha dramaticidade à personagem ficcional dardenniana. Nas palavras de Jean-Pierre Dardenne: “O corpo é o habitat da história” (MOSLEY, 2002, p.165). Rosetta incorpora a cidade real, e é o mundo atual que a torna possível. |
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Bibliografia | CARDULLO, Bert. Committed Cinema: the films of Jean Pierre and Luc Dardenne – essays and interviews. Inglaterra: Cambridge, 2009. |