ISBN: 978-85-63552-21-1
Título | Eduardo Coutinho, o singular e o comum |
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Autor | Josué da Silva Bochi |
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Resumo Expandido | Em 2012, o documentarista Eduardo Coutinho afirmou em uma entrevista que “há uma tendência a se pensar que ao passar de 'Cabra Marcado para Morrer' (1964-84) para um filme como 'Santo Forte' (1999) eu deixei de ser político. Mas eu considero que meus filmes continuaram sendo políticos. Acho que entender questões individuais como a morte, o envelhecimento e a perda é fundamental. (...) Essa foi a tragédia do socialismo, que nunca entendeu que há uma dimensão pessoal em tudo. Existe uma dimensão individual na vida que para mim é essencial e acho que chega ao político de outra forma”. A crítica à vulgata marxista não é para o diretor um preceito frio. Surge da desilusão e da crítica perante a falência dos ideais de emancipação do povo, compartilhada por muitos artistas e intelectuais de sua geração, e da experiência prática de escutar o outro “nem de cima, nem de baixo” ao longo de "Cabra Marcado para Morrer" e no programa "Globo Repórter". Mais do que tomar o estilo do diretor como mero reflexo de uma experiência pessoal, no entanto, é preciso compreender como a renovada atenção à vida de sujeitos “ordinários” ocorre num contexto de crescente anomia e de perda da centralidade do discurso das lutas de classes enquanto chave de leitura para as tensões sociais. Ao invés de celebrar a vitória do individualismo, a atenção ao singular torna-se (ou pode se tornar) um meio de atenção às demandas universais de reconhecimento e de reflexão sobre aquilo que Bourdieu chamou de “miséria do mundo” – miséria objetiva que, no entanto, só pode ser vista e dita em seus rastros. Se há comunidade (e política) na filmografia recente de Coutinho, obra esta reconhecida por seu minimalismo, é somente através da recusa radical de um romantismo nostálgico que recolocou no futuro o lugar da unidade perdida e das representações mesmas do “estar-em-comum”. Em "Santo Forte", filme cujo tema é a religiosidade popular, não se veem organizações de grupos políticos ou de movimentos sociais (como era o caso de "Santa Marta, Duas Semanas no Morro", de 1987), e tampouco são filmados os cultos, que poderiam sugerir a ideia de uma comunhão espiritual. Do pouco que resta – a presença das pessoas que falam de si frente a uma escuta desejosa do diretor – irrompe, não raro, o que poderíamos tratar como a potência da vida de “singularidades quaisquer” (cf. Agamben). Segundo Comolli, “a potência subjetivante da fala filmada tem menos a ver com o desdobramento (que ela permite, evidentemente) da interioridade do personagem do que com o liame que ela promove entre o corpo filmado e o nosso”. Há algo que nos cativa como espectadores e com o que me conectamos, porém não sob a forma de identidades ou de estilos consumíveis; algo que torna possível a relação com uma singularidade que já não se apresenta como irredutivelmente diferente da nossa, e que ao mesmo tempo mina nossa posição ou preconceitos prévios. A este respeito, é preciso refletir, primeiro, a respeito da força da presença (ou melhor, da imagem de uma presença, muitas vezes mais potente que a presença real) que pode nos lançar para uma espécie de comunidade de jogo; e, segundo, sobre o caráter de “obra aberta” que há nas personagens e o modo como podemos ou não completá-las ou continuá-las. Há uma potência de indeterminação que não é própria exatamente do sujeito, mas antes da linguagem. Isto é o que se vê em "Jogo de Cena" (2007): quando histórias de vida particulares migram de boca em boca ao serem reinterpretadas por atrizes, mesmo o rosto e o nome, que talvez antes parecessem imprescindíveis, tornam-se substituíveis ou dispensáveis. O caso exemplar e radical de "Jogo de Cena" mostra como o dispositivo de corporificação de uma presença não é uma fórmula fadada a se repetir a cada filme e a cada cena. Assim, interessam as variações e rupturas do método e o modo como elas sugerem novas distâncias, silêncios e ausências onde poderíamos esperar uma presença pura que se confundiria com um ideal de comunhão. |
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Bibliografia | AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. |