ISBN: 978-85-63552-21-1
Título | História do olho: a teoria rosselliniana do conhecimento |
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Autor | Luiz Carlos Oliveira Junior |
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Resumo Expandido | No cinema de Rossellini, observa-se uma narrativa recorrente, que consiste numa experiência visual de descoberta. Essa experiência se compõe, primeiramente, de uma longa espera, de um período de latência e expectativa, no qual o cineasta parece ter abandonado a ação dramática e se concentrado na simples captação dos deslocamentos de corpos ao longo de espaços que guardam com eles uma relação de estranhamento e desconexão. Depois, vem o segundo movimento: o de irrupção abrupta de um evento traumático, que atinge a personagem – e o espectador – com a força de uma epifania reveladora. Falar em “verdade” é sempre problemático, mas “o cerne da grande questão rosselliniana”, segundo Bergala (2007, p. 217), residiria em saber como, e a partir de que imagem da realidade, se pode fazer emergir a verdade. E qual seria o método de prospecção da verdade? Em sua famosa “Carta sobre Rossellini”, Rivette (2013, p. 53) escreveu que, com Viagem à Itália, Rossellini ofereceu ao cinema “a possibilidade do ensaio”, que “é a língua mesma da arte moderna; é a liberdade, a inquietude, a busca, a espontaneidade”. Ensaio como aventura, como busca do desconhecido. “O que detesto é partir do abstrato para chegar ao concreto”, afirmou Rossellini: “Parto do concreto para chegar... a qualquer lado, ao desconhecido”. Improvisando tanto seus meios de produção quanto suas estratégias dramatúrgicas, negociando com condições de filmagem que se impunham como parte do tema dos filmes, Rossellini não podia almejar outra verdade senão aquela que o mundo lhe apresentava como evidência literal, bruta, não lapidada por nenhuma inflação da linguagem; uma verdade a ser apreendida num jogo de tentativa e erro. O cinema de Rossellini é uma aventura do conhecimento; uma tentativa de limpar os olhos, de libertar o cinema e a visão dos estereótipos acumulados ao longo dos séculos. “O cinema transforma-se em instrumento de um tipo de pensamento que passa diretamente pela observação e visão, esta última compreendida como relação com um objeto, como curiosidade e percepção da diferença” (BERNARDI, 2007, p. 165). Um olhar de etnólogo, mas também de arqueólogo, que escava o passado numa “viagem de descoberta da alma primitiva escondida no coração do homem moderno” (ibid., p. 163-165). A revolução rosselliniana não se dirigiu só à técnica e à estética do cinema. Ela se deu num nível mais elementar: Rossellini repensou o exercício perceptivo que preside ao ato de tomada de vista de um plano cinematográfico, encarado aí como o traço material da ação de um olhar e de um pensamento. Pretendo falar do seguinte percurso na obra de Rossellini: de um olhar corporificado, como o dos filmes da fase Ingrid Bergman, em que há sempre uma personagem submetida a uma série de experiências visuais aterrorizantes e reveladoras (um modelo bastante cristão de conhecimento, uma dinâmica de revelação da verdade mediante o choque, a visão amedrontadora [a visão da cólera divina]: uma vez passado o medo, o sujeito processa a terrível experiência vital e dela vê surgir, com clareza sublime, a ideia divina), ele passa, com Índia (1959), a um olhar aéreo, espiritual, um olho diluído na natureza, no cosmos, uma pura consciência incorpórea a flanar pelo mundo. Beaubourg (1977), derradeiro filme de Rossellini, depura e aprofunda esse olhar que é como uma visão do olho do intelecto, numa longa jornada pelo interior do Centro Georges Pompidou, dispositivo museal bastante elaborado em termos conceituais, e que se vê investigado pela câmera de Rossellini. Se, em Viagem à Itália, o diretor realizava, através dos olhos da personagem de Bergman, uma viagem simbólica às raízes da cultura mediterrânica, em Beaubourg, um olhar desprendido, desvencilhado, passeia em meio às obras da arte contemporânea. Uma história das formas se constrói entre uma viagem e outra; uma história que produz um novo tipo de espectador (responsável, ativo, envolvido no processo de criação de significado) e constitui um ato de teoria. |
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Bibliografia | AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. 3ª ed. Campinas, SP: Papirus, 2012. |