ISBN: 978-85-63552-24-2
Título | Vida e Morte em "Cemitério do Esplendor", de Apichatpong Weerasethakul |
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Autor | Henrique Codato |
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Resumo Expandido | Para Jean-Louis Comolli (2008), durante muito tempo a humanidade acreditou que poderia ganhar as atenções e os favores dos deuses – e dos demônios, ele acrescenta – por meio de toda sorte de rituais, sacrifícios, feitiços e sacrilégios; de estátuas, marionetes e imagens. Entretanto, milhares de anos mais tarde e depois de mais de um século da invenção do cinema, entendemos melhor que não eram exatamente os deuses que era preciso amansar; mas, sim, o próprio homem e suas paixões. De fato, como bem lembra Comolli (2008, p. 208), o cinema herda das antigas magias o papel de “conjurar e domesticar o desconhecido”. Para ele, “a utopia do cinema é nos fazer reencontrar os mortos que voltam, vivos, diante de nossos olhos, na tela que nos fixa tanto quanto a fixamos” (COMOLLI, 2008, p. 211). Ao narrar a criação do universo em "Metamorfoses", Ovídio nos apresenta uma série de histórias que mostram como a morte aparente pode ser apenas uma espécie de passagem para outra vida. Assim, homens se transformam em rios, estrelas, flores e pedras; Phoenix, o pássaro mágico, renasce das cinzas; estátuas e seres inanimados ganham alma e sentimentos; enfim, os episódios mitológicos narrados por Ovídio apontam para uma relação bastante intricada entre vida e morte, na qual uma não pode ser entendida simplesmente como a antítese da outra, mas como elementos que se atravessam mutuamente, cujas fronteiras parecem muito mais fluidas e permeáveis do que aquelas construídas pelo racionalismo cartesiano. Ora, se na modernidade o cinema se tornou, por excelência, o constituinte imaginário que serve de palco/de tela para nossas negociações com o amor e a morte, tal como defende a filósofa Marie-José Mondzain (2002, p. 44), é porque ele sintetiza “uma história das técnicas que assumem o lugar dos mitos” (COMOLLI, 2008, p. 23). De fato, se a morte parece ser o mais poderoso vetor para a arte cinematográfica, talvez seja porque o cinema, entre todas as artes, é aquela que mais bem consegue registrar o tempo que passa, como aposta Laura Mulvey (2006). Chamado de “Ovídio do século XXI” por Dominique Païni, o cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul traz como uma de suas principais obsessões a temática da vida após a morte. Suas narrativas sublinham a dimensão espiritual do mundo e lançam sobre a cultura tailandesa, de base religiosa budista e fortemente influenciada pela tradição animista Khmer, um olhar bastante singular que embaralha os limites entre realidade e ficção, entre vida e morte. Maxime Scheinfeigel (2008) supõe que o caráter anímico que preenche o cotidiano dos tailandeses se encontraria substancialmente presente também no cinema de Weerasethakul por meio do imbricamento de crenças e saberes arcaicos que o aparato cinematográfico permite colocar em cena. Para ela, tanto a magia quanto o cinema concebem o mundo a partir de sua duplicidade, da manifestação de um mundo que é outro (aquele dos mortos), mas, ainda assim, o mesmo mundo (este dos vivos). A partir da noção do duplo tomado em sua acepção psicanalítica – “o duplo é o inquietante mensageiro da morte”, dizia Freud ([1919]2010, p. 351) – mas considerando-a também do ponto de vista da antropologia, da filosofia e da literatura, e com o auxílio de alguns importantes autores que se dedicaram a pensar a morte -Roland Barthes, Georges Bataille, Edgar Morin, Jacques Derrida, André Habib - proponho examinar como o binômio morte/vida opera como força motriz para a obra “Cemitério do Esplendor” (Cemetery of Splendor, 2015), não apenas no âmbito da narrativa, da história contada; mas, igualmente, em seus aspectos formais e visuais, na própria escritura do filme. Defendo a hipótese de que, ao romper o véu que separa a vida da morte de modo a confundi-las, alguma coisa da ordem do tempo e do ritmo da narrativa parece se esfacelar, vindo, assim, a ressignificar tanto a ficção encenada quanto a experiência do espectador diante do filme. |
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Bibliografia | BARTHES, R. O grão da voz. Martins Fontes: São Paulo, 2004. |