ISBN: 978-85-63552-24-2
Título | De um mito a outro: Pasolini entre os Tikmu'un |
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Autor | André Guimarães Brasil |
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Resumo Expandido | Diante das narrativas, cantos e imagens dos Tikmu'un (Maxakali), César Guimarães (2017) nos pergunta: “pode uma imagem vir como um sonho vem? Poderia uma imagem vir em sonho e agir no real (...)?” De modo inaudito, essa pergunta faz vizinhança a uma formulação distante, por Pier Paolo Pasolini, quando define os traços do que seria uma Subjetiva Indireta Livre: ela implica elaboração estilística, permitindo “encontrar nos meios técnicos do cinema as suas qualidades oníricas, bárbaras, irregulares, agressivas e visionárias” (PASOLINI, 1982, p. 146). A partir destas proposições, que por caminhos diferentes ligam as imagens do cinema àquelas do sonho e do mito, gostaríamos de repensar a aposta que fez Pasolini lançar-se em direção às realidades dos países do chamado Terceiro Mundo. Como reler este verso – “África, minha extrema alternativa!” – que encerra o poema “Fragmento à morte”, de 1961? Como rever hoje a reivindicação enunciada por Pasolini em suas Notas para uma Oréstia africana, a de uma transfiguração das divindades furiosas em deusas da poesia? Comecemos por imaginar uma outra visita de Pasolini, não mais à Àfrica, à Índia, à Palestina ou ao Rio de Janeiro, mas às aldeias maxakali dispersas em uma desolada região do Norte de Minas. Imaginemos o que pensaria diante deste outro cinema, deste cinema do outro (no sentido de que seja capaz de assumir corpos e perspectivas das alteridades com as quais se relaciona): cinema-morcego, cinema-gavião, cinema-lagarta, cinema-lontra, cinema-mandioca. E a questão então será: como repensar a aposta pasoliniana diante destas imagens que parecem vindas do sonho, vindas em sonho, nascidas do interior do mito? Em Notas para uma Oréstia africana (1970) e em outras notas documentárias que fez na Índia e na Palestina, Pasolini realiza uma destas “breves viagens ao país do povo”, que para Rancière (1990), na literatura ou no cinema, “oferecem o inesperado espetáculo de outra humanidade, em suas várias figuras”. Trata-se ali de encontrar o mito, apostando em sua transfiguração poética. Nos filmes tikmu'un, especialmente nestes que se realizam como parte dos rituais de iniciação das crianças (Tatakox), a cena parece ter-se invertido: não se trata agora de uma visita do cineasta a uma comunidade outra, sua presença estrangeira a provocar discreta ou intensa perturbação. Ao contrário, os cineastas tikmu’un acompanham, ou mesmo trazem consigo os visitantes – povos-espíritos – que chegam à aldeia: não raro, a câmera os aguardará ali, na região limítrofe onde, da floresta à aldeia, o invisível precipita-se no visível. A formalização destes filmes nos parece mais marcadamente inseparável da configuração estética do próprio evento filmado. Ali, não se trata de encontrar uma formalização estética, capaz de atualizar criticamente a experiência mítica (diante das urgências do presente e das contingências da história), tal como em Pasolini. Talvez, trate-se menos de convocar, observar, olhar o mito (para, quem sabe, reivindicar sua transfiguração em uma forma estética, apostando em uma política por vir) do que de olhar por meio do mito, por meio de suas próprias formas sensíveis. Participando fortemente da cena mítica e ritualística, tragado para seu interior, o cinema tikmu’un constitui-se como dispositivo cosmopolítico. Para além do humano, participa de um espaço intensivo, que abriga também os povos-espíritos. Nesse espaço da aliança e da vizinhança com o fora, cada sujeito são povos e cada povo, uma multiplicidade. Ali, homens, mulheres e crianças falam uns pelos outros e “os espíritos cantam pela boca dos homens”. (TUGNY, 2014) , o que nos leva a pensar em uma espécie de discurso indireto livre tornado forma de socialidade. O cinema é chamado a participar, como agência, desse modo de socialidade, integrando um xamanismo múltiplo. Vez ou outra, ele precisa diminuir o passo, recuar levemente, para filmar e comentar a cena, de modo a endereçar as imagens a outros povos. |
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Bibliografia | ARAUJO, Mateus. Glauber Rocha e os Straub: diálogos de exilados. In: Gougain, E et al. (Orgs). Straub-Huillet. São Paulo: CCBB, 2012. |