ISBN: 978-85-63552-24-2
Título | O personagem como figura: o caso de Jogo de cena |
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Autor | Diego Pacheco Damasceno |
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Resumo Expandido | A penetração do conceito de figural nos estudos fílmicos impactou o estudo do personagem. Oriundo da filosofia, o termo designa uma dimensão do visível em que a legibilidade é erodida e que apela apenas à sensibilidade (e não à razão), incapaz, portanto, produzir sentidos de natureza não-verbal (discurso) (Dubois, 1999). Na teoria do cinema, o figural denomina uma ordem de sentido não submetida às disposições que produzem a narrativa e a representação (Aumont, 1996). Convencionou-se chamar "figura" o modo de configurar a imagem que permite vislumbrar a dimensão figural da imagem. Decorre daí uma série de estudos que valorizam a plasticidade da imagem como instância em que nenhum significado adere, espécie de significante puro. A ideia do personagem como figura contesta a tradicional triangulação entre um corpo (forma), uma personalidade (representação) e um percurso dramático (narrativa), que funda definições literárias do personagem. Brenez (1997) propõe analisar o personagem a partir de sua dimensão plástica, como corpo, e de parâmetros como formas de aparição, movimento, duração e montagem. Dubois (1999) define a figura como configuração da imagem que conjuga uma forma (visível), um conceito (denomina um modo de significação) e um efeito (opera transformação e gera sentido). Nessa perspectiva, a análise do personagem se transforma. O que se vê na tela não é a projeção de um sujeito em um corpo, individual e fixado, mas um personagem que é "sistema de transformações" capturado em "uma rede de relações mais material do que psicológica" (Leandro, 2007). Brenez (1997, p. 180) entende que “o personagem não é desde o início uma biografia, uma individualidade, um corpo ou uma iconografia, ele é uma circulação simbólica, feita de elementos plásticos, de esquemas narrativos e de articulações semânticas”. A ideia é retirar o personagem da relação de ancoragem em uma realidade concreta ou imaginária e pensá-lo para além, ou aquém, da representação: “onde se via uma função narrativa ou um papel, desenha-se um corpo, uma figura” (Leandro, 2007). As considerações acima embasam a proposta de análise deste artigo, que se debruça sobre os modos de composição do personagem no documentário Jogo de cena, de Eduardo Coutinho. No filme, embaralham-se os relatos de um grupo de mulheres com as performances de atrizes que interpretam as histórias contadas por meio de personagens ficcionais. Duas situações caracterizam o sistema de personagens de Jogo de cena. Uma em que o personagem representa a si mesmo: sua aparição remete à sua própria existência, concreta, fora do universo fílmico; quando fala, ele de si mesmo. Outra, em que o personagem narra o outro: sua aparição remete à existência de uma pessoa real, que não aquela que interpreta o personagem no filme; quando fala, ele fala de outro. Falar de si corresponde a atestar a semelhança: a forma da presença (fisionomia, corpo, voz, postura, ideias, história de vida) no filme corresponde à forma da presença no mundo histórico. Por outro lado, falar do outro corresponde a atestar a diferença: a forma da presença no filme não corresponde àquela do mundo histórico, pois é uma pessoa (atriz) que toma o lugar de outra pessoa (real), representando-a. Nossa proposta é que há um terceiro modo de aparição, que chamaremos de personagem-figura. Neste modo, o personagem não fala nem de si mesmo nem do outro, portanto, não faz remissão a nenhuma pessoa. O personagem-figura não funda seu sentido na factualidade da presença (a sua, a do outro ou a de ambos), mas da remissão que faz aos efeitos (sensoriais e reflexivos) que o dispositivo fílmico causa. Ele remete não a alguém, mas ao próprio jogo de correspondências e diferenças entre pessoas e modos discursivos que o filme encena. Ele é o traço de um processo que percorre todo o filme e o caracteriza, e que pode ser descrito como o vacilar das fronteiras entre pares opostos como outro e mesmo, o real e o imaginário, a ficção e documentário. |
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Bibliografia | AUMONT, J. À quoi pensent les films. Paris: Nouvelles Éditions Séguier, 1996. |