ISBN: 978-85-63552-24-2
Título | O testemunho, a montagem e as margens do arquivo |
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Autor | leandro pimentel abreu |
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Resumo Expandido | As técnicas de montagem e colagem das vanguardas modernas podem ser sintetizadas no gesto de recolhimento de fragmentos colocados em uma moldura. Ao recombinarem-se, potencializavam um tipo de memória recalcada que se manifestava a partir das novas relações que se estabeleciam. Seria preciso ultrapassar a significação, atravessar as fronteiras que distinguem o que pode ou não ser lembrado, arrancar os documentos desses limites e colocá-los em um outro lugar no qual fosse possível ver os traços de eventos passados. Sem a ansiedade da representação, essas imagens voltam-se para o presente. Assim como os testemunhos, que buscam atualizar no gesto e na fala uma experiência, a montagem possibilita que o acontecimento salte do continuum da história progressiva, como diria Walter Benjamin. O testemunho circula em um lugar ambíguo entre os recursos memoriais. Sua representação do passado ocorre por narrativas, artifícios retóricos e imagens. Para Paul Ricœur, o testemunho “resiste não somente à explicação e à representação, mas até à colocação, a ponto de manter-se deliberadamente à margem da historiografia e de despertar dúvidas sobre a sua intenção veritativa.”(Ricœur, p. 170, 2008). Nos registros de testemunhos, a performatividade dos corpos no esforço de construção de uma narrativa ganha uma outra camada, que se manifesta na fotografia, na montagem e na apresentação, que se manifestam de forma singular nos trabalhos contemporâneos que flertam com o potencial mnemônico dos silêncios, lacunas e intervalos presentes nas imagens e nos arquivos. Um bom exemplo do potencial do uso desses espaços intersticiais nas imagens de arquivo é o filme-ensaio de Christian Delage. Cineasta e historiador, teve acesso ao material bruto filmado por John Ford no julgamento dos crimes nazistas em Nuremberg. A partir desse arquivo, Delage produziu o longa Nuremberg, les nazis face à leurs crimes, no qual se propõe a investigar as imagens e as condições em que foram realizadas, tendo como apoio o depoimento das testemunha presentes no decorrer do julgamento. No contato com o material da filmagem, Delage procurou dar uma maior atenção às hesitações, aos tropeços da fala e aos silêncios, aquilo que normalmente seria descartado na montagem. Os gestos corporais e os momentos de pausa passaram a ter interesse particular. Buscou-se uma leitura daquilo que não foi verbalizado mas que surge com potência nessas lacunas, em que o desejo de comunicar se afasta e o testemunho ocorre por meio de uma simples presença, produzindo um ruído nesse local, em que os papéis e as falas de cada um pareciam estar definidos desde o início. O trabalho de Delage remete à instalação Entre l’écoute et la parole: Derniers Témoins, Auschwitz-Birkenau 1945/2005, apresentada em 2010 pela artista Esther Shalev-Gerz. Em três telas, com uma defasagem de sete segundos entre as imagens projetadas em cada uma delas, aparecem em câmera lenta e sem som, os rostos. Não há falas, somente os silêncios e as pausas ao longo dos depoimentos dos sobreviventes dos campos de concentração. As imagens são em um plano relativamente fechado no rosto e a mesma imagem aparece em cada tela com uma decalagem de sete segundos, o que faz com que os gestos projetados em câmera lenta se prolonguem ainda mais. Ao destacar as marcas no rosto, as expressões da face e os gestos, a artista busca apontar essa presença viva da memória no discurso. Uma inscrição da memória no corpo, mais do que em uma fala concatenada por uma narrativa. Os dois trabalhos, o filme-ensaio de Delage e a instalação de Shalev-Gerz, buscam enfatizar o gesto e aquilo que não está dito de modo explícito. Essa sobrevivência, que ocorre por meio de uma memória manifesta, independente da capacidade de verbalização do que ocorreu, torna-se perceptível a partir da montagem na qual são inseridas legendas, títulos, silêncios ou narrações, possibilitando ao espectador, a experiência do silêncio eloquente da imagem. |
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Bibliografia | AGAMBEN, Giorgio. Moyen sans fin, notes sur la politique. Paris: Rivage Poche, 2002a. |