ISBN: 978-85-63552-24-2
Título | O gesto químico: uma subversão da forma no cinema |
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Autor | Andrea C. Scansani |
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Resumo Expandido | A imagem é dotada de intenção, de certa personalidade, para além do conteúdo referencial que preenche nossos olhos, através de sua inevitável visibilidade, e independente de qualquer propósito de seu autor. No cinema, essa potência anímica da imagem pode ser examinada pelo olhar atento às especificidades inscritas em sua matéria, em seus gestos. Se para Giorgio Agamben (2008) "o elemento do cinema é o gesto e não a imagem", falta-nos compreender os desdobramentos que esta afirmação charmosa e, de algum modo, pouco esclarecedora nos coloca. Em seu livro “Gestures”, Vilém Flusser esboça uma definição, manifestamente inconclusa, com a qual podemos nos aproximar do gesto do [e no] cinema. Para ele, os gestos podem ser compreendidos como movimentos do corpo, ou dos instrumentos e ferramentas unidos a este, que expressam uma intenção diferente da razão (FLUSSER, 2014). Parece-nos legítimo pensar o cinema como uma expressão emancipada da razão na qual os corpos humanos, obrigatoriamente vinculados e processados por inúmeras ferramentas, transformam-se em matéria fílmica. A partir do pressuposto de que um conjunto de gestos híbridos (humanos e técnicos) tecem o que chamaremos de gesto cinematográfico e que este agrupamento é a substância fundante das camadas da estrutura fílmica, nos concentraremos nas possibilidades de criação de um dos gestos mais ousados e invasivos - portanto menos explorados - do cinema: o gesto químico. Esta possibilidade de manejo da matéria, este gesto intimamente atrelado ao processamento químico, encontra-se, muitas das vezes, escamoteado em uma disfarçada representatividade figural do objeto filmado. Ou, nas palavras de Jacques Aumont (2004) “a matéria fílmica está sempre contida pela representação, ela nunca é autorizada a se exibir sozinha, mesmo que seus vestígios apareçam às vezes”. A subversão da forma no cinema, a explicitação de sua matéria, de sua carne, é legado do cinema experimental, salvo concessões esporádicas em momentos, ou em cineastas, pouco ortodoxos (i.e. Buñuel, Epstein). “A poética da matéria e a exploração sensorial dos elementos formam um dos capítulos mais belos da invenção cinematográfica [...], o cinema nos ensina ou nos lembra que a matéria é o tecido do mundo. [...] Descobrimos através do cinema quão profundamente a assinatura plástica do mundo [...] está inscrita em nós” (SIETY, 2017). A subversão da forma cinematográfica, através de suas nuances físico-químicas, coloca em evidência a maleabilidade criativa da emulsão fotográfica e seu paradoxal apelo indicial; sublinha a potência sensorial do cinema ao expor sua familiar estranheza, sua ambiguidade; subverte os corpos filmados com sobreposições, solarizações, arranhões, distorções, corrosões, queimaduras, véus. O corpo humano e o corpo fílmico transformam-se em laboratório da matéria numa liberação poética do vestígio. Pensar o gesto químico como uma forma de pensamento sobre a “assinatura plástica do mundo” é a proposta deste trabalho. Para tanto traçaremos um diálogo entre as obras fotográficas de Raoul Ubac, mais precisamente “La Nébuleuse” e “Penthesilée”, ambas de 1938, com os filmes “Mu(e)s” e “Esquisse” de Frédérique Ménant (2015) - realizados em conjunto com a artista plástica Nathalie Menant e processados artesanalmente no laboratório coletivo L’Etna, em Paris. Os modos de produção da imagem cinematográfica são de fundamental importância para que a diversidade processual possa ser explorada. Não à toa aproximamos o fazer fotográfico de Ubac com o trabalho artesanal da cineasta. Ambos apresentam caminhos frutíferos na anatomia desta conversa de corpos expostos ao derretimento da forma, à dissolução da matéria e que se tornam a “metáfora viva do tecido do mundo”. |
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Bibliografia | AGAMBEN, Giorgio. Notas sobre o gesto. Artefilosofia, Ouro Preto, n. 4, janeiro 2008, pp 09-14. |