ISBN: 978-85-63552-26-6
Título | A resistência do corpo: artifício e alegoria em Medo do Escuro e Imo |
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Autor | Camila Vieira da Silva |
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Resumo Expandido | Na contramão de uma certa tendência cinematográfica de ancoragem no realismo, alguns filmes brasileiros contemporâneos procuram apostar no artifício como estratégia de invenção de outros mundos possíveis no cinema. É uma vontade presente nos longas-metragens Medo do Escuro (2015), de Ivo Lopes Araújo, e Imo (2018), de Bruna Schelb Corrêa, que convocam experimentações estéticas a partir da construção de imagens alegóricas, na tentativa de estremecer as relações contíguas com um real previamente conhecido e instaurar outro real por meio do cinema em diferentes modos de articulação da cena, que convocam a performance e o fragmento. Inventar outras articulações no cinema é também criar múltiplos sentidos provisórios. Medo do Escuro e Imo fazem uso da alegoria como contraponto ao simbólico. Enquanto as metáforas e os símbolos apontam para unívocas interpretações de mundo, a alegoria possibilita uma proliferação de sentidos, que sempre mudam a cada olhar e criam momentos de interrupção no solo da significação. Para Walter Benjamin (1984), “onde o símbolo nos leva, a alegoria nos tira”. A alegoria é uma resistência ao símbolo. Nada na alegoria é definitivo. Se pensarmos a força da alegoria nas imagens de Medo do Escuro e Imo, parece ser preciso sempre retornar aos filmes e, a cada nova exibição, pensar outras interpretações. De acordo com o pensamento benjaminiano, “na esfera da intenção alegórica, a imagem é fragmento, ruína” (BENJAMIN, 1984, p. 198). As ruínas em Medo do Escuro não são apenas a constituição aparente da paisagem. Elas são imagens do provisório e do fragmento que a alegoria evoca e, de algum modo, roçam a fragilidade e o desamparo de uma cidade como Fortaleza, povoada por edifícios e ruas abandonadas. Lugares de memória, destruídos ou largados à própria sorte, pairam em meio à dinâmica predatória de ocupação dos espaços da cidade, que privilegia a construção de grandes empreendimentos e ordena remoções. Como ainda é possível habitar esta cidade? Como criar bolsões de resistência neste cenário apocalíptico? Contentar-se com o pouco, com o frágil, construindo diferenças com os resquícios que ficam, pode ser uma estratégia. O gesto é o mesmo do protagonista que constantemente arrisca voltar às ruas para coletar os restos deixados pelos outros. Em Imo, a resistência não se situa em relação à ocupação predatória de um espaço urbano, mas a um modo de vivência dentro do ambiente doméstico que oprime mulheres. É também um filme de fragmentos, de episódios cênicos em que corpos femininos interagem com objetos da casa em alteração aos seus usos comuns do cotidiano. A banalidade das situações corriqueiras é substituída por estranhamentos de ordem cênica, em que a performance tem seu lugar prioritário nas ações: ser invadida por vários braços em uma mesa, arrancar os olhos e enterrar no jardim, ter o corpo nu servido em um banquete organizado por homens. Se o sangue é o elemento da violência presente nos corpos das mulheres em Imo, os lampejos intermitentes de Medo do Escuro - espelhos reluzentes, reflexos do sol e o brilho nos corpos dos personagens – parecem vislumbres de um possível que permitem aos corpos continuar, a dar mais um passo, a não ceder diante das ameaças. Nos momentos mais críticos, há sempre a queda, mas algo impulsiona os personagens a recomeçar. Em uma morada hostil, talvez não haja força suficiente para combater os poderes. Quem sabe tais instâncias de soberania sejam apenas imagens a impor o medo, a tentar nos imobilizar e arrefecer nossos ânimos? O impulso de resistência pode estar guardado no corpo: ele extravasa em um movimento de dança em Medo do Escuro e guarda o sangue que envenena os agressores em Imo. O que esses filmes podem convocar em meio a uma nova barbárie? |
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Bibliografia | AGAMBEN, G. “O que é o contemporâneo?”. In.: O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. |