ISBN: 978-85-63552-26-6
Título | O Sabbat das Bruxas: "Corra!" e os 50 anos de "O Bebê de Rosemary". |
|
Autor | Douglas Deó Ribeiro |
|
Resumo Expandido | Na última cena de “O Bebê de Rosemary”, a protagonista atravessa a passagem entre seu apartamento e o dos vizinhos com uma faca à mão, para enfim confirmar que seu filho não está morto, que é cria do Diabo e que uma espécie de reunião satânica acontece no lugar. Uma mistura de signos compõe um presépio macabro: quadros incendiários na parede, o berço preto com a cruz invertida como móbile, convidados trazendo presentes, a própria Rosemary com uma camisola longa como uma túnica azul celeste... Essa cena final funciona como o quarto movimento dos ritos diabólicos que o filme manteve em várias espécies de foras-de-quadro até então. A reunião aparece (1) como cântico ritual através da parede que separa os apartamentos, (2) como o rito de fecundação, em que Rosemary é estuprada pelo Diabo numa atmosfera de sonho, intoxicada pela mousse que ganhou de Minnie, (3) como revéillon do ano de 1966, anunciado como o ano 1 de uma nova era, cujo marco inicial é o embrião maldito que Rosemary carrega no útero e (4) na cena final, em que o menino se faz carne (embora nunca tenhamos sua imagem). Para além das imbricações que o filme elabora a cada minuto entre os elementos do imaginário católico e a seita obscura comandada por simpáticos velhinhos (o Papa, a carne de cordeiro, etc), a reunião de bruxos, que pretende “vingar os queimados e torturados” tornando carne o filho do Diabo gerado por uma primípara, anuncia distopicamente uma nova era em que valores tradicionais serão sepultados, em perfeita consonância com os brados dos movimentos contraculturais dos anos 1960, como o Maio de 68 na França, os Cinemas Novos, o Rock e a New Hollywood, de que o filme de Polanski faz parte. Críticos da obra do cineasta sinalizaram para a coincidência entre as profecias funestas do filme e a história pessoal do cineasta. Se um ano antes, em seu menos aclamado “A Dança dos Vampiros”, a cena final do baile mostra os personagens de Polanski e Sharon Tate planejando um futuro idílico, longe daquela Transilvânia (embora ela esteja contaminada pela mordida do vampiro) e, pouco tempo depois, os dois tenham se casado na vida real, o horror da parturição e o melodrama macabro de Rosemary pareceu um sombrio prenúncio do assassinato brutal de Tate, grávida de oito meses, pela seita de Manson, um subproduto monstruoso da contracultura estadunidense. Cinquenta anos depois, “Corra!”, de Jordan Peele, elabora uma distopia histérica e racista que assusta pelas óbvias semelhanças com a realidade atual (e seu imaginário). No filme, jovens negros são sequestrados para que brancos decadentes (velhos, doentes e deficientes) possam ter suas almas implantadas num corpo vigoroso através de um fantasioso procedimento psicocirúrgico. Num equivalente ao conciliábulo de “Rosemary”, um grupo de macabros aristocratas reúne-se com a máscara de uma festa de família para realizar o leilão do protagonista – cujos olhos de artista visual são finalmente comprados por um marchand cego. O elemento que conecta esses filmes e que interessa a esta análise, é a presença desses grêmios secretos e tenebrosos – equivalentes aos míticos Sabbats das Bruxas, reuniões milenares das culturas pagãs que sofreram perseguição pelo cristianismo como bruxaria e que, no entanto, celebravam as mudanças de estação, como, por exemplo, a Noite de Walpurgis, eternizada na tragédia “Fausto”, de Goethe, que sincretiza as comemorações da Santa Walburga e os festejos heréticos, anunciando a Primavera. Nas narrativas ocidentais, essas cenas materializam temores, reais e imaginários, da sociedade de sua época, como espelhos que olham para o tempo que ora retratam, colocando em xeque a posição do próprio sujeito que vê tais imagens, como analisou Foucault sobre “As Meninas”, de Velásquez. Nos dois filmes analisados, o reflexo assustador do mundo que vemos, em lugar de apresentar a psicopatia solitária de um indivíduo, está impregnado de temerosas sociopatias de grupo, registros dos mais obscuros recônditos da humanidade |
|
Bibliografia | AVRON, Dominique. Roman Polanski. Marseille: Rivages, 1987. |