ISBN: 978-85-63552-26-6
Título | Memória, identidade e corpo em Vênus Negra |
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Autor | Catarina Andrade |
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Resumo Expandido | Este artigo busca os possíveis desdobramentos discursivos sobre a representação do corpo feminino no cinema, a partir do filme Vênus negra (Vénus noire, 2010), do diretor franco-tunisiano, Abdellatif Kechiche. Assim, quer-se entender de que modo a protagonista Saartije Baartman se insere e atua na história do colonialismo a partir da noção de cinema intercultural na qualidade de dispositivo de representação de uma história cultural e de uma memória, por meio do papel que o corpo (objeto de desejo, lugar de resistência, fronteira cultural e étnica, vestígio de história e memória) desempenha. Para tanto, parece necessária uma aproximação entre as teorias do cinema, as teorias sociais, os estudos culturais e a filosofia. Para Alain Badiou, “o cinema é uma experiência filosófica” (Badiou, 2015, p.31), uma vez que entre cinema e filosofia se estabelece uma relação de transformação e possibilita uma reprodução da realidade e, ao mesmo tempo, o lado inteiramente artificial dessa reprodução. De fato, o artifício do cinema quer ser pensado em situações da realidade. Andréa França diz que: “A experiência de ver filmes passa não só pela possibilidade de conhecimento, mas pela necessidade de debruçar-se sobre o que pensam as referências e representações imaginadas desses filmes, e como abrem a experiência daquilo que pensam sobre a realidade.” (2003, p.24-25). A partir dessa característica do cinema, ou de um dos seus princípios, muitos teóricos pensaram nas imagens cinematográficas dentro de uma discussão filosófica. Isto posto, interessa analisar o filme Vênus negra partindo da concepção de imagem de Henri Bergson: “por ‘imagem’ entendemos certa existência que é mais do que o idealista chama de uma representação, mas menos do que o realista chama uma coisa: uma existência situada na metade do caminho entre a “coisa” e a “representação” (2011, p.1-2). Ou seja, interessa compreender a materialidade das imagens por sua capacidade de atuar na construção cultural da história e da memória dos sujeitos, buscando empreender uma análise da memória da imagem fílmica em sua capacidade de produção de uma memória individual e coletiva extra-fílmica. Russel Kilbourn (2010) desenvolve seu pensamento acerca do cinema enquanto um dispositivo de memória, apontando para o problema da representação da memória dentro do universo cinematográfico e sendo um de seus recursos o uso do flashback. Nesse sentido, Vênus negra é construído a partir de um flashback; de caráter mais histórico, e que, embora biográfico – reconta uma passagem da vida da sul-africana Saartije Baartman –, não desponta das lembranças da personagem central, mas de uma memória coletiva. Portanto, compreende-se a história de Saartije como um conjunto de imagens capazes de complementar, dar continuidade, completar em algum nível, a recomposição das histórias de dominação e colonialismo que a precedem e que a sucederão. Dentre os elementos visuais e estéticos utilizados pelo diretor, um dos mais determinantes é o primeiro-plano; que faz aproximar o espectador do campo da consciência dos personagens e que revela não apenas o corpo negro de Saartije, como o confronta aos corpos brancos em seu entorno. Mostrada em sucessivos primeiros-planos a mise-en-scène da humilhação de Saartije leva as plateias ao divertimento, ou seja, a mise-en-scène da humilhação é a própria fonte de prazer. No intuito de promover uma dimensão de crítica e denúncia, questionando o espectador e seus limites, como também questionando a própria sociedade e sua capacidade de discriminar e estigmatizar a diferença, essas cenas lançam o questionamento sobre os limites da realidade e da encenação. Com isso, percebemos em Vênus negra, um desejo de recuperar a história por meio da memória inscrita nos corpos, inclusive num corpo que não reconhecerá sua humanidade, mas que assume uma função questionadora da própria história, contribuindo para o debate que busca revisitar o colonialismo e suas consequências. |
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Bibliografia | BADIOU, Alain. O cinema como experimentação filosófica. In. YOEL, G. (Org.). Pensar o cinema: imagem, ética e filosofia. São Paulo: Cosac Naify, 2015. |