ISBN: 978-85-63552-26-6
Título | DESMONTAR PARA RECONTAR |
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Autor | Fernanda Bastos Braga Marques |
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Resumo Expandido | Je vous salue Sarajevo (1993), de Jean-Luc Godard, é um curta-metragem de apenas 2’09”, feito a partir de uma fotografia da Guerra da Bósnia (1992-1995). Trata-se de um filme-ensaio de montagem, ou seja, parte de elementos criados com outros fins – fotografias, música e poemas – e cria um nexo entre eles no processo de montagem. A montagem não é uma propriedade exclusiva do cinema, embora seja essencial para sua existência. Ela está presente na colagem dadaísta e na fotomontagem surrealista e expressionista, que, por sua vez, recebem influência de diversos aspectos da modernidade, como, por exemplo, a linha de montagem fordista e a arquitetura modular. (COCCHIARALE, 2007, p. 9) Muitos estudiosos do cinema discutem a montagem como criadora de narrativa, entre eles Jacques Aumont (AUMONT, 1995), Gilles Deleuze (DELEUZE, 1983) e André Parente. (PARENTE, 2000) A montagem é, sem dúvida, uma atividade fundamental do cinema e se dá pela associação de dois elementos independentes que resultam em um terceiro diferente dos originais. É ela que estabelece a relação de cada elemento com o todo, criando a linguagem de um filme, que inclui narrativa, ritmo e forma. No caso de Je vou salue Sarajevo, antes de juntar componentes na ilha de edição, foram necessários alguns outros estágios: o primeiro gesto do processo de montagem é escolher uma única fotografia, que é uma imagem fixa, para ser a imagem de um filme que é, essencialmente, imagem em movimento. Isso indica a opção estética pela interrupção do fluxo imagético, cinematográfico e dos acontecimentos. Para migrar de um meio para outro, o autor atribui à imagem uma duração e junta um som e um título – o segundo passo da montagem é a escolha desses componentes externos à fotografia. A terceira etapa é a decupagem (processo de divisão em planos de cada cena durante o planejamento de uma filmagem), a refilmagem dos elementos internos da cena fotografada, o recorte da imagem em dezoito enquadramentos diferentes do original, que atribui maior ou menor peso aos elementos da cena, construindo assim a dramaticidade. Nessa operação Godard privilegia os detalhes, que são índices, provas e personificações da catástrofe, assunto recorrente em sua obra; e constrói o filme combinando essas dezenove imagens, com a trilha sonora e com a narração em voz off feita por ele mesmo, além de duas cartelas (de início e de fim) e uma segunda fotografia em preto e branco – do ator Karl Hern encenando em 1977 a peça Ghost Trio, de Samuel Beckett – que funciona como um breve epílogo. A imagem escolhida guarda a potência e a latência do conflito, indica sua continuidade: imediata, no caso da situação fotografada, e crônica, no caso da Europa, a quem o cineasta interpela nominalmente em sua narração. Essa imagem remete diretamente ao tempo (associado visualmente ao movimento), porque marca a interrupção no fluxo dos acontecimentos e evoca um agora remoto, um isso foi ou um rastro. É essa fotografia saturada de agoras que Godard utiliza para se comunicar com passado. Godard atua como um terceiro, como aquele que "inscrevendo um possível fora do par mortífero algoz-vítima, dá novamente um sentido humano ao mundo". (PIRALIAN e ALTOUNIAN, apud GAGNEBIN, 2006, p. 57) Ele é o terceiro que ouve o testemunho da cultura e filma (e/ou monta) reconstruindo o elo entre homem e mundo que, segundo Deleuze, se desfez. Confronta como artista a sociedade de consumo com aquilo que ela produz e consome ciclicamente: imagem e guerra. Ele apresenta ao espectador três posições possíveis diante da guerra: a de vítima, a de algoz e a de cúmplices que desviam o olhar mantendo o dedo no gatilho, mas oferece uma quarta possibilidade, a de testemunha19 que reflete a história do outro para não repeti-la. (GAGNEBIN, 2006, p. 57) |
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Bibliografia | AUMONT, Jacques. A estética do filme. Campinas. Papirus. 1995. |