ISBN: 978-85-63552-26-6
Título | Uma construção "mestiça" |
|
Autor | Nizia Villaça |
|
Resumo Expandido | “Eu fiz o que eu tinha que fazer”, “há sempre alguém para segurar-me na hora certa”. As duas transcrições são estruturais no filme de Lars Von Trier, Dançando no escuro, pois estabelecem elos variados entre as diversas sequências: realidade/fantasia, consciente/inconsciente, comunidade/individualidade. O filme Dançando no escuro vai justamente discutir culturas, corpos, olhares, suas classificações, a partir do acolhimento/estranhamento da tcheca Selma num subúrbio americano. A dança e seu pensamento/ação vão orientar as sequências do filme no que se refere a iluminação, sonoplastia, escolha de cenários, personagens, ponto de vista e tipos de câmera. O cinema e a dança se unem como suporte para uma política do corpo, na qual performances e imperfeições de variada ordem discutem o imaginário corporal. As diversas sequências integram corpo e câmera em imagens que, segundo o Dogma 95 de que Lars Von Trier é signatário, frequentam diversos gêneros cujos recursos são explorados segundo dinâmica própria. O diretor/roteirista passeia com sua câmera pelo melodrama, pelo realismo, surrealismo e/ou neorealismo, pelo musical e pela tragédia, criando uma linguagem impactante, para falar do social, de suas normas, da diferença das mentes/corpos cujos canais internos e externos busca ressaltar seja em cada indivíduo, seja na comunicação com o outro. A conexão do sentido da visão com o da audição é um dos pontos altos do filme. A sonoplastia do filme é bastante expressiva de um corpo que interage com o mundo abrindo mão da visão. As sequências alternam o silêncio, ruídos, sobretudo das máquinas, e a transformação dos ritmos em música. O importante a meu ver é como os recursos tecnológicos mais ou menos sofisticados são sublinhados para criar toda uma estética política feita de uma heterogeneidade linguagem, de códigos oferecidos em sintaxes e semióticas que provocam novas atitudes interpretativas sugerindo uma leitura que chamarei “mestiça”. Peter Pál Pelbart, em seu ensaio de biopolítica, fala de corpos que fogem ao padrão, corpos frágeis que, no entanto, encarnam estranha obstinação e uma recusa inabalável e afirma: “nesses seres somos confrontados a uma surdez que é uma audição, uma cegueira que é uma vidência, um torpor que é uma sensibilidade exacerbada, uma apatia que é puro páthos, uma fragilidade que é indício de uma vitalidade superior”. Para Deleuze, é nesses corpos não blindados que outras forças podem passar, e José Gil observou o processo pelo qual, na dança contemporânea, o corpo se assume como um feixe de forças e desinveste seus órgãos, desembaraçando-se dos “modelos sensório-motores interiorizados”. É nesta zona que parece movimentar-se o corpo de Selma em Dançando no escuro. Sua fragilidade não se adapta ao adestramento e à disciplina que lhe impõem a comunidade americana em que a tcheca, comunista, tenta encontrar um futuro para si e para seu filho. Simultaneamente, é desta fragilidade que surge a afirmação da força contra a discriminação de que o filme dá testemunho. O corpo titubeante da tcheca Selma não se enquadra, não se adequa à modelagem dos padrões americanos, seja para trabalhar na fábrica, seja para dançar e cantar no teatro. Desde o início do filme, cria-se um impacto deste estranho que tenta achar um ninho na América. A diferença da cultura de Selma se expressa em seu próprio corpo em oposição aos demais corpos femininos do filme. Sobretudo é significativa a figura da personagem escolhida como substituta de Selma na hipótese de ela não poder fazer a cena por qualquer motivo: alta e loura Susan. O eixo simbólico do filme é basicamente o da cegueira e o da visão, seja no sentido literal, seja no sentido metafórico. A dança como movimento total aciona e mobiliza os diversos códigos fílmicos e articulados aos sentidos de Selma que vão se afinando com a percepção da personagem central que paulatinamente perde a visão. |
|
Bibliografia | DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia; tradução Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: 34, 1995. |