ISBN: 978-85-63552-26-6
Título | Travessia do herói e pertencimento a ordem do coletivo |
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Autor | Henri Arraes de Alencar Gervaiseau |
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Resumo Expandido | Darei continuidade, nesta comunicação, a reflexão desenvolvida em anos anteriores acerca do documentário como meio de expressão da experiência do deslocamento. Nos filmes mais instigantes, a travessia de espaços sociais e geográficos distantes dos territórios de origem dos personagens põe em jogo experiências de alteridade e favorece a emergência de narrativas a respeito da vivência da travessia do percurso. Tais experiências de alteridade tornam-se particularmente intensas em filmes no qual o realizador, é, ele mesmo, o principal personagem da narrativa, e encontra-se implicado no percurso de uma travessia cujo movimento primeiro remete a um involuntário processo de deslocamento e distanciamento do seu território de origem. Tal é o caso de Lost, lost, lost, de Jonas Mekas, obra de cunho ensaístico, que dialoga com a tradição romântica das narrativas de formação, na qual a errância do protagonista da estória desempenha papel central. Poeta e cineasta originário da Lituânia, envolvido em atos de resistência a ocupação alemã, perseguido pelos nazistas, o realizador deixou o seu país em 1944 e transitou, durante quatro anos, por diferentes campos de refugiados na Europa, antes de conseguir emigrar, em 1949, para os EUA. Ao chegar a Nova Iorque, Mekas compra uma pequena câmera Bolex 16 mm, graças a qual constitui uma espécie de diário fílmico, registrando, por intermitência, mas de modo persistente, momentos do dia a dia, e de cenas de encontros, performances e demais situações observadas e/ou vivenciadas. Desenvolve esta inovadora práxis, até então inédita no campo cinematográfico, sem ter previamente elaborado um projeto muito bem definido do tipo de aproveitamento possível do material recolhido. A partir de planos filmados por mais de duas décadas, monta, a partir de 1969, uma série de filmes, entre os quais se destaca o citado filme. Redigido muito anos após a ocorrência das cenas registradas, e enunciado por Mekas com sutis gradações de ritmo, tom e sotaque, o texto em inglês da narração tem uma dimensão essencialmente memorialística e auto-reflexiva. A lembrança do passado ocorre, no filme, na confluência de diversas memórias coletivas, sendo que a mais pregnante, inicialmente, é a do exílio. Buscarei discutir algumas das heterogêneas estratégias de registro escolhidas no decorrer das seis partes que compõem o filme, bem como apontar modos privilegiados de composição dos materiais, no processo de construção da narrativa, para dar conta de vivências afetivas e sócio-históricas evocadas pelo narrador-diretor. Mostrarei que se, em função da fragmentação da montagem e do entrelaçamento enigmático das matérias de expressão (imagens, trechos musicais, falas em voz over, intertítulos na tela), é árduo o trabalho de acompanhamento da recomposição, pelo filme, da evolução da trajetória do protagonista, no curso da narrativa, é possível, entretanto, através de uma analise atenta, progressivamente apreender o desenho da travessia do herói que a trama compõe. Será apontado que as falas em voz over, apesar de seu caráter freqüentemente elíptico e enigmático, desempenham papel central na condução da narrativa e na configuração de uma expressão audiovisual da subjetividade cindida do exilado, bem como do processo mnemônico vivenciado pelo narrador-diretor no seu esforço de rememoração da sua trajetória existencial no curso dos primeiros quatorzes anos de sua vida nos EUA. Mostrarei, finalmente, que se, ao cabo do relato, ocorre uma recomposição, pelo narrador, do seu próprio eu, tal movimento encontra-se intrinsecamente relacionado a consolidação da emergência de novos sentimentos de pertencimento que transcendem a dimensão puramente afetiva e remetem a dimensão do coletivo, da cultura e do compartilhamento de um ethos comum no território de arribação. |
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Bibliografia | Certeau, Michel de: A invenção do cotidiano. 1. Artes do fazer. RJ: Editora Vozes, 1990 |