ISBN: 978-85-63552-26-6
Título | Figurações do corpo refugiado em Ressonâncias (Nicolas Khoury, 2017) |
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Autor | PEDRO HENRIQUE ANDRADE DE SOUZA |
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Resumo Expandido | O presente trabalho propõe uma análise de Ressonâncias (2017), do realizador libanês Nicolas Khoury. Vencedor do circuito de curtas estrangeiros da 23ª edição do Festival É Tudo Verdade!, de 2018, o filme transporta o público para um campo de refugiados no Vale do Beeka, no Líbano. A obra de Khoury, porém, não entrará em quaisquer detalhes sociais ou econômicos da atual crise de deslocamento forçado que levou 1,5 milhão de sírios para o país vizinho. Antes, o que importa é traçar e ensaiar estratégias de figuração do corpo refugiado. Em Ressonâncias, o corpo do desenraizamento é vislumbrado por meio de sua fragmentação e, paradoxalmente, de seu ocultamento. Não vemos os rostos dos indivíduos que emprestam seus depoimentos a Khoury. Apenas ouvimos uma sucessão de testemunhos que se sobrepõem e se contradizem, compondo histórias de um mundo distópico, de incêndios, mutilações e retornos fantasmagóricos. A trilha de declarações acompanha um encadeamento igualmente nebuloso de imagens, em que não identificamos com precisão qualquer personagem. Vemos apenas membros e pedaços de corpos que insistem em aparecer como peças separadas de um todo ainda por descobrir. Em meio aos registros de silhuetas e fragmentos corporais, o diretor imiscui planos do campo, um lugar gélido, acinzentado e úmido, de estreitos corredores entre barracas e árvores. Khoury traz ainda um terceiro tipo de imagem: radiografias que supomos ser dos mesmos refugiados entrevistados. Tais registros denotam uma intenção anônima de mapeamento dos corpos e subjetividades, que ultrapassa a coleta de depoimentos. Nesse terreno claustrofóbico e pouco acolhedor, a ausência de imagens que revelariam as faces dos refugiados tem um efeito duplo – por um lado, produz um apagamento das identidades, dissolvidas num contínuo de violência, e agrava um processo de desumanização; por outro, reconstitui as subjetividades não em sua unidade precisa, mas em uma coletividade de memórias. A imagem-chave de Ressonâncias, porém, é outra. Khoury revela uma sala hermeticamente fechada e ocupada com monitores, que exibem todas essas imagens descritas acima. Num primeiro momento, temos a impressão de se tratar de uma ilha de montagem. Contudo, fica evidente que o local está mais próximo de um centro de vigilância que monitora o que se passa no acampamento. Com esse plano, o diretor opera uma superposição de olhares – o dispositivo cinematográfico se confunde com o dispositivo do controle, e nossa experiência enquanto espectadores é colocada sob suspeita. Ao aderirmos à narrativa proposta por Khoury, não estaríamos compactuando com esse mecanismo de visualização e monitoramento dos corpos? Em que medida a visão do documentarista se distancia ou se aproxima do panopticismo do poder em nossas sociedades contemporâneas? A partir das questões suscitadas pela obra de Khoury e das qualidades estéticas do filme, proponho uma investigação do estatuto do documentário quanto à representação das experiências de refúgio e desenraizamento. Com base nas pesquisas do teórico palestino Edward Said e do historiador da arte norte-americano T. J. Demos, procuro identificar que imaginários do mundo globalizado são apresentados em Ressonâncias. Também reflito sobre os métodos de figuração e representação do corpo no filme de Khoury, inspirado pelos escritos dos teóricos do cinema Nicole Brenez e Vincent Amiel. Ao mesmo tempo, questiono os argumentos que, inspirados pela vontade de uma partilha justa do sensível, podem precipitar um esforço de representação nem sempre distinto da imagética hegemônica do Estado e da mídia. Com sua obra, Khoury emite um alerta para todos que querem fazer justiça com as imagens – fazer falar e figurar o corpo refugiado, “para o bem ou para o mal”, continua sendo uma forma de reificar seu sofrimento e torná-lo objeto, em vez de sujeito de sua própria experiência. |
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Bibliografia | AMIEL, Vincent. Le corps au cinéma. Paris: Presses Universitaires de France, 1998. |