ISBN: 978-85-63552-26-6
Título | Mil e uma noites na cidade industrial: A figura do operário em Arábia |
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Autor | LUÍS FELIPE DUARTE FLORES |
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Resumo Expandido | Ao fim do prólogo de Arábia (Affonso Uchoa, João Dumans, 2017), André, um garoto de classe média, vai até a casa de Cristiano, trabalhador da Vila Operária de Ouro Preto, para ler as páginas do seu diário. Esse diário, encontrado sob um jornal que o jovem usara para limpar um corte no dedo, condensa a passagem de uma vida a outra – a ferida aberta, o risco da alteridade, a desobstrução do olhar (jornalístico-midiático). A narrativa se torna, a partir de então, um fluxo para as vivências do operário, convidando à compreensão ou ao reconhecimento de uma outra existência sensível. No espectro das representações de trabalhadores no cinema brasileiro, que abarca propostas tão variadas como Pedreira de São Diogo (1962) e Garotas do ABC (2003), Arábia apresenta um regime de sensibilidade renovado. Em diálogo com determinadas estéticas realistas, suas estratégias de construção almejam menos impor um ponto de vista externo do que entender as experiências operárias, arrancá-las provisoriamente de fluxos midiáticos que as invizibilizam. Como afirma Uchoa, é "um esforço para entender o trabalhador, antes de falar por ele". Esse tipo de representação, pautada pela escuta dos sujeitos, remete de maneira direta a um filme como São Bernardo (Leon Hirszman, 1972). Mais ainda, sua formulação épica retoma fortemente o projeto de Hirszman, conservando, não obstante, uma diferença fundamental em relação às obras surgidas, no rastro do Cinema Novo e do Cinema Marginal, em adjacência aos movimentos sociais das décadas de 60 a 80, como Viramundo (1964), Abc da greve (1979-90) e Linha de montagem (1982): via de regra, eles convocam o homem do povo como um agente político em formação ou membro de algum grupo identitário mais amplo. Mesmo Eles não usam blacktie (1981), marcado pela tensão irredutível entre individualismo e união, torna patente uma construção de consciência em prol da organização popular. Cristiano, protagonista de Uchoa e Dumans, não se identifica com nenhum coletivo político, afirmando sua existência por outras vias de manifestação subjetiva, presentes no corpo, na voz, no olhar. Desconectado, mas não isolado do entorno – como é o caso de A queda (1978) – ele é capaz de afirmar certos laços provisórios, de engendrar imagens pujantes nos encontros ao longo da jornada. Ao pensar a figura do operário, Arábia responde a um momento histórico específico, não mais o autoritarismo atroz da ditadura militar de ideologia neoliberal, mas o desmonte brutal das garantias econômicas dos pobres, a colonização profunda do tecido social pelo neoliberalismo de essência individualista. Nesse cenário, é inevitável que o operário traga consigo um fator de alheamento. A urgência que se encontrava, antes, nos espaços políticos concretos, como a fábrica, a rua, a periferia, é como que dissipada pela cortina midiática que se apropria, cada vez mais, dos sentidos possíveis da realidade. Arábia responde a isso com um desejo de fabulação, acrescendo à herança de Hirszman algo da expressividade de John Ford e James Joyce. Em várias de suas obras, nas fronteiras do realismo e do lirismo, esses artistas buscaram romper com os circuitos hegemônicos de visibilidade para conferir uma dignidade fílmica a figuras do povo marginalizadas. Pretendemos observar de que modo Arábia realiza, em relação ao trabalhador, um gesto semelhante, composto por uma dupla articulação: ao mesmo tempo em que recolhe algo da sua dinâmica contemporânea, contribúi ativamente para reverter o desequilíbrio de forças que o prefigura no campo simbólico, organizando uma nova forma de aparição. Investigaremos esse movimento não tanto na sedimentação direta da herança cinemanovista, que culmina, talvez, nas representações do povo em Hirszman, mas sobretudo no diálogo fílmico com outras tradições "realistas", como Ford, Joyce, Mozos, John dos Passos e Straub-Huillet. |
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Bibliografia | BERNARDET, Jean-Claude. Cineastas e imagens do povo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. |