ISBN: 978-85-63552-26-6
Título | Urgência, imaginários fílmicos e construção da memória em “O Processo” |
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Autor | Gabriela Alcântara de Siqueira Silva |
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Resumo Expandido | Em “Memória, história, esquecimento”, Ricoeur fala de diversas questões que não cabem aqui com a devida atenção, mas há algumas em especial que encontram espelho no Brasil contemporâneo. Ao falar do “dever da memória”, das estratégias de esquecimento, Ricoeur nos aponta a importância da lembrança enquanto estratégia política e de sobrevivência, para que a História não se repita em seus aspectos mais tenebrosos. Diante de um dos maiores eventos da política brasileira, Maria Augusta Ramos responde a esta construção de memória voltando seu olhar para Brasília, e o que deveriam ser apenas alguns dias de filmagem transforma-se em cerca de 450 horas de material levadas à ilha de edição, de onde sai o contundente O Processo. Sem o interesse de convencer o espectador ou reconstruir a realidade, emprestando falas e recriando acontecimentos como tem acontecido em obras de ficção recentes que também tratam da Lava Jato e dos fatos que se desdobraram a partir dela, Maria Augusta entrega ao espectador um retrato fiel dos bastidores do impeachment. Entretanto, é preciso lembrar sempre – em especial perante filmes como este – que estamos diante do cinema, e não de uma matéria jornalística. Maria Augusta não se pretende imparcial, nem tampouco panfletária. A subjetividade de seu ponto de vista diante do impeachment é costurada de forma sublime e elegante na montagem, assinada por Karen Akerman. Para além dos depoimentos e declarações repetidos incessantemente nas mais diversas mídias, O Processo nos entrega detalhes do real que escorre pelas brechas e foge do espetáculo tendencioso da grande mídia, como aponta Comolli (2008). Seja o espectador favorável ou contrário a Dilma, acompanhar os enredo da forma como Maria Augusta o filma é compreendê-lo com uma clareza que não consegue ser transmitida através do jornalismo brasileiro. Diante da tela, vemos o PT e os senadores da esquerda lutando por uma espécie de sobrevivência política. Vemos os embates mais calorosos entre os políticos, mas é justamente nas cenas mais civilizadas que se tem a consciência do acontecimento enquanto um espetáculo ficcional em si. Um dos momentos mais marcantes do filme nesse sentido é quando vemos Lindberg Farias e Gleisi Hoffman apresentando seus argumentos, seguidos por um plano aberto que mostra que os membros da Comissão de Impeachment sequer os olham, com seus rostos e corpos virados, envoltos em conversas paralelas. Nesta apresentação, realizo um estudo do filme partindo tanto da ideia de que ele trabalha com a construção de memória como um de seus principais objetivos, quanto de uma análise de seus modos de produção documentária diante da urgência do acontecimento. Mesmo que a adversidade de sua realização não exista na tela com imagens trêmulas ou da cineasta ao lado dos manifestantes em confronto com a polícia, ela está presente na necessidade do uso de imagens cedidas pela TV Senado, posto que o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, não autorizou a entrada das equipes de cinema no espaço. A urgência na construção daquelas memórias imagéticas reconhecida tanto pelos que a produziam quanto por aqueles que eram seus objetos de registro. Interessa-me ainda olhar para este filme à luz das considerações de Deleuze (2015) acerca do acontecimento, algo que força nossos sentidos e nos leva a uma busca por novos significados, pelas respostas àquilo que acontece. Proponho então olhar seus gestos fílmicos, escolhas e potências, unindo-me às pesquisas que observam este cinema recente, que une estética e política como se buscasse responder a questão levantada por Migliorin (2014) acerca do que pode o cineasta diante de acontecimentos que contaminam “praças e países” (p. 235). A partir das personagens, a cineasta traça retratos humanos que escapam às cruezas e friezas da grande mídia. Como se filmar fosse um ato não só de resistência, mas principalmente de tentativa de compreensão, ela aprofunda-se, mergulha, retorna e observa o espetáculo montado pelos políticos. |
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Bibliografia | COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: A inocência perdida. Cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2008. |