ISBN: 978-85-63552-26-6
Título | Jean Rouch e os filmes que mudaram meu passado. |
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Autor | Luciane Garcia Moreira Bustamante |
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Resumo Expandido | “É verdade que nem todos os negros são africanos e nem todos os africanos são negros. Apesar disso, pouco importa onde eles estão. Enquanto objetos de discurso e objetos do conhecimento, desde o início da época moderna, a África e o negro têm mergulhado numa crise aguda tanto a teoria da nominação quanto o estatuto e a função do signo e da representação” (Mbembe, 2013 p.32). Para Achille Mbembe, a razão negra é um conjunto de enunciados, saberes, comentários, falas discursivas e muitas vezes “disparatadas”, criadas em torno do que ele chamou de “o objeto que inclui a coisa ou as pessoas de origem africana”. Narrativas, que criadas em situações históricas diversas e principalmente adversas, transformaram os povos africanos em uma comunidade racial partilhada, “fundada na recordação de uma perda” e que precisaria incessantemente tentar reconstruir uma historiografia sem vestígios, unicamente através de fragmentos. Fragmentários também são alguns filmes do cineasta Jean Rouch, que escolhi analisar e mesmo me apropriar, para através deles, reconstruir os fragmentos de uma infância passada na África e que, igualmente pela falta de uma narrativa que desse conta de recontar, precisou ser rememorada através de imagens, sons e sensações. Um tanto autobiográfico, mas com uma parte de ficção, bem ao estilo de Rouch, eu optei por juntar às imagens dos filmes, algumas autorais – filmes curtos que fiz aleatoriamente e usei para preencher as lacunas. A escolha de todas as imagens foi bastante afetiva, escolhi dentre os filmes: aqueles que me capturaram visualmente e me tocaram emocionalmente. Os que fizeram com que a “mágica” acontecesse diante dos meus olhos. Essa “mágica” que também permeia quase toda a obra do cineasta. Uma obra que nasce de seu olhar curioso e encantado pelo universo das crenças, rituais e modos de viver africanos. É com Os tambores do passado que o filme começa e não por acaso, o barulho dos tambores, ou Tam Tams, serve como um fio condutor que leva a “personagem” de volta para a sua história. O principal impulso para a realização do filme, foi traduzir, através de imagens, todo o encantamento, descoberta e reencontro com as memórias do corpo e da alma. E principalmente, seguindo a ordem “rouchiana”, reapropriar-se e ressignificar as imagens para criar uma história que, se em parte é autobiográfica, também se entrega ao devaneio e à ficção. Laura Marks, em The skin of the film, analisa a capacidade única do cinema intercultural para classificar os rastros deixados pelo deslocamento cultural, principalmente no pós Guerra, e através deles ter uma leitura significativa dos fatos negligenciados pela história oficial. Segundo a autora, ao mergulhar nas “camadas geológicas” de um evento, e somente assim, seria possível desvendar uma linguagem ou um modo de pensar capaz de “falar” por ele: “O cinema intercultural trabalha à margem do impensado, lentamente construindo uma linguagem capaz de pensá-lo”. Nesse sentido, o cinema intercultural deveria travar uma luta, não apenas com a história official, mas também com algumas identidades políticas e suas tendências à categorização. Ainda em Mbembe, vimos que existem duas principais narrativas coexistindo fortemente: uma “consciência occidental do negro” que consiste num juízo de identidade, e uma “declaração de identidade”, quando inversamente à primeira, “o negro diz de si mesmo ser aquele sobre o qual não se exerce domínio”. Então, a pergunta que gostaria de propor é: como recriar e recontar partes de uma memória que não pode ser contada pela história oficial ou ainda através da lembrança individual? Laura Marks cita inúmeros filmes que começam a trabalhar o “que não pode ser dito ou pensando”, reportando-se à memória dos objetos, do corpo e dos sentidos. É o que gostaria de investigar mais profundamente. |
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Bibliografia | Mbembe, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: N-1 Edições, 2018. |