ISBN: 978-65-86495-01-0
Título | Narradores inconfiáveis nas séries de TV do século 21 |
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Autor | Carlos Gerbase |
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Resumo Expandido | Depois de inovar pela construção de personagens complexos com moralidade dúbia, encerrando décadas de histórias infantis em que o Bem combatia o Mal, as séries de TV norte-americanas estão dando um novo passo. Desta vez a aposta é na ousadia narrativa. Recurso já bastante usado na literatura e no cinema, mas raro na televisão, os narradores inconfiáveis podem ser flagrados nas séries “The affair” (de Sarah Treem e Hagai Levi, da Showtime, primeira temporada em 2014), “The night of” (de Richard Price e Steven Zaillian, da HBO, temporada única em 2016) e “The Sinner” (de Derek Simonds, da USA Network, primeira temporada em 2017). Esse tipo de narrador exige do espectador bem mais do que o esforço de acompanhar a história. Ele precisa decidir o que realmente está acontecendo, já que alguns fatos exibidos decorrem da narração de um personagem não-confiável. Já no início do século 20, alguns escritores faziam experiências interessantes com os narradores. Em alguns trechos de “Ulisses”, de James Joyce, publicado em 1922, o narrador pode ser trocado num mesmo parágrafo. Na cena “A Praia”, o seu famoso fluxo de consciência flutua entre três personagens, sendo que um é extra-diegético e dois são diegéticos. Para o leitor, há um intenso trabalho de decodificação e interpretação. O efeito geral é de que não há certeza sobre o que está acontecendo. No cinema contemporâneo, existem vários exemplos de narradores inconfiáveis. Às vezes a estratégia funciona muito bem, como em “Spider – desafie sua mente” (David Cronenberg, 2002) e às vezes pode ser frustrante, como em “A ilha do medo” (Martin Scorcese, 2010). Nos dois casos, a narrativa audiovisual acompanha o relato de um personagem com perturbações mentais. Não são narradores mentirosos – o que seria um modo ingênuo e pouco eficiente de construir a inconfiabilidade – e sim de memórias falsas que eles acreditam ser verdadeiras, e como tal são mostradas ao espectador. Nas séries que são objeto deste estudo, há três maneiras de fragilizar a confiabilidade do narrador. Em “The affair”, desde o primeiro episódio da primeira temporada, são apresentadas ao espectador pelo menos duas versões diferentes dos mesmos eventos. Não se trata de mudar o ponto de vista narrativo, mantendo a história incólume. Quando muda o narrador, mudam também as ações e os diálogos. Até os figurinos e as locações podem ser alterados. Cabe ao público escolher a versão verdadeira, ou achar que todas são falsas. A inconfiabilidade vem do número excessivo de narradores. Em “The night of”, o personagem principal afirma ter “apagado” (provavelmente por efeito de uma droga) no momento decisivo da trama, de modo que não pode se declarar culpado ou inocente. Se ele mesmo não pode dizer o que aconteceu, e a história segue seu ponto de vista, o espectador também não pode. A inconfiabilidade decorre de uma elipse subjetiva da trama. Já em “The sinner”, a assassina, embora tenha que admitir seu ato, pois as provas e as testemunhas são inúmeras, é incapaz de contar a razão de ter matado um suposto desconhecido na praia, sob a luz do sol e o olhar de dezenas de pessoas. À medida que a trama evolui, ela vai lembrando, pouco a pouco, o seu passado, e este é representado na tela. Suas memórias, contudo, não são nada confiáveis, por razões neurológicas, e há versões conflitantes no seu processo de reconstrução mental. A inconfiabilidade é resultado de um estado alterado de sua consciência. Embora o surgimento, no espaço de poucos anos, de três obras bem sucedidas comercialmente que usam processos criativos semelhantes, é importante apontar as sutilezas de cada um deles na elaboração da inconfiabilidade narrativa. Através de uma análise mais aprofundada dos roteiros, pretendemos traçar um panorama desta nova estratégia narrativa na TV, que promete dar bons frutos nos próximos anos e manter as séries como uma boa alternativa para o entretenimento ficcional adulto. |
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Bibliografia | BRANIGAN, Edward. Point of view in te cinema: a theory of narration and subjectivity in classical film. Berlin: Mouton Publishers, 1984 |