ISBN: 978-65-86495-01-0
Título | Relações entre o audível e o visível no cinema: o caso de "Arábia" |
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Autor | Luíza Beatriz Amorim Melo Alvim |
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Resumo Expandido | Em estudos anteriores sobre filmes com voz over em obras do cineasta francês Robert Bresson (ALVIM, 2017) e também em filmes contemporâneos, como no estoniano Na ventania, de Martti Helde, 2014 (ALVIM; CRUZ, 2018), observamos um fenômeno de defasagem entre aquilo que está sendo dito pela voz over e o que está sendo mostrado pela imagem. Nos filmes de Bresson, Diário de um padre (1951), Um condenado à morte escapou (1956) e Pickpocket (1959), tal fenômeno está mais na ordem da redundância (o que é dito, é mostrado depois ou vice-versa, ou ainda, simultaneamente), embora não num sentido pejorativo, mas sim numa ressonância, palavra que André Bazin usa se referindo a Diário de um padre. Essas defasagens, mais que um simples eco, dão um ritmo à edição de imagens e sons. Em Diário de um padre e Pickpocket, há também o elemento do diário aparecendo em quadro, além de que em Um condenado à morte escapou e, especialmente, em Diário de um padre, há a relação inequívoca com uma obra literária anterior. Já no filme de Martti Helde, além do aspecto rítmico, as defasagens entre o visto e ouvido trazem também a questão do irrepresentável, daquilo que se escolhe não mostrar por ser tão terrível, como o momento da morte de uma criança ou um estupro na situação limite de um campo de trabalho na Sibéria com prisioneiros estonianos durante a Segunda Guerra Mundial. A relação com a Literatura, além do fato de que o diretor usou cartas reais e documentos de arquivo para a construção do texto over, dá-se nessa capacidade imaginativa ao se ouvir um relato, algo que um leitor faz diante da página escrita. Em Arábia (2017), filme brasileiro de Affonso Uchoa e João Dumans, a partir de cerca de 21 minutos, uma estratégia narrativa transforma o operário Cristiano (Aristides de Sousa), personagem que sofre um acidente e entra em coma, no narrador do filme a partir de seu caderno encontrado em sua casa pelo adolescente André. A defasagem entre o que Cristiano conta e o que é mostrado nas imagens se dá de forma ora semelhante ao que acontecia nos filmes de Bresson (numa defasagem rítmica entre imagem e som, como constatamos em esquema feito por nós com todas as incursões de voz over do filme), ora o fato é só contado pela voz, enquanto a imagem mostra Cristiano reflexivo ou caminhando pelas estradas. Não se trata aqui da questão do irrepresentável como em Na ventania, sendo essa falta da imagem por escolha dos diretores na edição, tal qual evocado em entrevista. Em debates sobre o filme, como o ocorrido numa das mesas da SOCINE 2018, costuma vir à tona o caráter de estranheza do relato de Cristiano pelo fato de ser ele uma pessoa de um extrato humilde (assim como o seu próprio ator não profissional, encontrado durante o documentário anterior de Uchoa, A vizinhança do tigre), de mesmo confessar no filme que não pegava em caneta há mais de 20 anos, porém, o que se segue é um texto relativamente elaborado. Consideramos que essa estranheza é mais uma defasagem, que, por sua vez, aproxima o filme da arte literária. Concordamos com Flores (2018), quando observa que o texto investe na opacidade da narrativa do personagem popular, e com Perez (2018), que considera Cristiano um sujeito-autor de um texto possível, embora imaginário. Os próprios diretores evocaram o desejo se de aproximarem de uma construção literária ao escreverem o relato. Mesmo assim, analisando o modo de falar de Cristiano, vemos que ele não está isento de uma série de elementos da oralidade, como a eliminação de vários plurais de palavras, o uso de “pra”, gírias populares e traços do regional mineiro. Por outro lado, as pausas no comentário over não necessariamente obedecem à sintaxe comum das frases, mas a um ritmo particular, com maior acentuação geralmente na penúltima sílaba da última palavra, além do próprio ritmo da edição que leva em conta imagem e som. Analisaremos com detalhes tais defasagens em Arábia, remetendo-nos também à sua relação com a Literatura. |
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Bibliografia | ALVIM, L. A música no cinema de Robert Bresson. Curitiba: Appris, 2017. |