ISBN: 978-65-86495-01-0
Título | A narração em segunda pessoa e "Você" |
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Autor | CAROLINA OLIVEIRA DO AMARAL |
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Resumo Expandido | Em literatura, a narração em segunda pessoa corresponde a uma narração cuja ênfase está não em quem narra, mas para quem se narra, e a natureza relacional desta narração. Apesar de rara na ficção, como lembra Baoyu Nie (2015) a narração em segunda pessoa é bastante utilizada em literatura não-ficcional: manuais, cartas publicadas, discursos; o que a define é um extensivo direcionamento a alguém, um “você” que pode ser o próprio leitor ou um personagem específico. O protagonista pode ser tanto o narrador quanto o endereçado da narração (Fludernik, 1993). No cinema, imagem, som, performance, enquadramento, decupagem e montagem, fazem parte do processo de narração que Bordwell (1985) define como a atividade de selecionar, reorganizar e apresentar o material narrativo de modo a provocar efeitos no espectador. Ou seja, um processo, uma relação que envolve filme e espectador. A categorização literária de narração em “pessoas” – terceira pessoa quando um narrador extradiegético se encarrega de contar a história e primeira pessoa quando a narração está ancorada num personagem – costuma ser menos eficiente para a análise de obras audiovisuais que outras categorias como a de focalização (Genette apud. Gaudreault e Jost, 2009) ou acompanhamento (Altman, 2008) que mostram como em módulos narrativos, toda a narração se arranja de maneira a acompanhar um personagem, dois ou múltiplos. Entretanto, quando a obra audiovisual recorre à narração em voz-over, as categorias literárias podem nos ajudar a refletir sobre o arranjo narrativo escolhido. É o caso da série de TV Você (2018-). Baseado no livro de Caroline Kepnes (2014), a adaptação televisiva usa a narração em segunda pessoa presente no livro através de uma voz-over na qual o protagonista Joe (Penn Badgley) se dirige a Beck (Elizabeth Lail) ao mesmo tempo seu par romântico e vítima. A história mistura tramas de suspense e comédia romântica para mostrar como Joe fica obcecado por Beck e manipula tudo o que for possível para conseguir o que quer. O uso da segunda pessoa no livro ressalta o ponto de vista do protagonista e a relação entre os dois: ao recontar toda a história, Joe explica a Beck suas razões e motivações e faz referências a filmes de comédia romântica para que ela o compreenda. Na série, esta função da narração se mantém, e reforça as estratégias de construção da imagem: “tudo em Você, desde a paleta de cores crepuscular, à movimentação de câmera e o foco doce nos limites do quadro diz que você está assistindo a um romance” (Rosenfield, 2019). A trama de suspense pareia um perseguidor psicopata e sua vítima como se fosse um romance. Na verdade, ambos os personagens acreditam estar vivendo um romance e esta atmosfera absurda numa história de suspense e morte é irônica. Se convenções de construção de imagem são usadas para convencer o espectador de que se trata de um romance, a narração em voz-over de Joe busca um tom satírico e ridiculariza outros personagens que são propositalmente ridículos. É a narração responsável por mostrar em Joe uma persona cômica não tão distante do que Mernit (2001, p.61) observa num protagonista de comédia romântica: “não apenas na habilidade de comentar a situação com inteligência, o que indica que seu personagem está ligado no momento, mas uma capacidade de rir de si mesmo, o que implica uma autoconsciência atrativa”. A dinâmica em Você é mesclar os gêneros thriller e comédia romântica e causar um desconforto ao mostrar as arbitrariedades das convenções românticas que são capazes de, em algum grau, criar um engajamento do publico num relacionamento entre vítima e assassino. Além das convenções de imagem, a voz-over em segunda pessoa é o principal agente da trama de comédia romântica a partir de convenções na criação dos personagens, encadeamento da história e uma “autoconsciência atrativa”. Esta análise se concentra em cenas com a voz-over silenciada para mostrar como a narração em segunda pessoa é fundamental para a mistura de gêneros. |
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Bibliografia | BORDWELL, D. Narration in the fiction film. Madison: University of Wisconsin Press, 1985. |