ISBN: 978-65-86495-01-0
Título | Nem fetiche, nem escatologia: crítica das imagens de squirting |
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Autor | Carla Miguelote |
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Resumo Expandido | Envolvida na realização de um documentário sobre ejaculação feminina (squirting), comecei uma pesquisa sobre representações audiovisuais do esguicho. A primeira constatação é de que, sendo uma espécie de fetiche dos filmes pornôs, a representação dos esguichos femininos é rara fora desse campo. No pornô, onde em geral o olhar masculino organiza a cena, o que se destaca é a capacidade do homem de outorgar tamanho prazer à mulher. E mesmo fora do pornô, os raros filmes que retratam a experiência o fazem a partir de uma perspectiva masculina. É o caso de Warm Water Under a Red Bridge (2001), do cineasta japonês Shohei Imamura, e Sacred water (2016), do diretor belga Olivier Jourdain. O primeiro conta a história de um homem que viaja a uma vila de pescadores onde encontra uma mulher que ejacula. A mulher é cleptomaníaca. Quando está transbordando de água por dentro e não encontra um parceiro sexual, precisa ter um prazer de outra ordem. Então rouba coisas no mercado e alaga o chão em frente às prateleiras. O líquido que ela expele é tão abundante que escorre pelo chão e deságua no rio em frente à sua casa, atraindo peixes grandes, para o deleite dos pescadores locais. O segundo filme é um documentário sobre a ejaculação feminina em Ruanda, onde se estima que mais de 80% das mulheres ejaculam. A prática, chamada de Kunyasa, aparece como parte da cultura do país. Como o título do filme sugere, a ejaculação feminina é tradada como algo sagrado. A tradição diz que tudo começara com uma rainha cujo fluido orgásmico era tão abundante que teria formado o Lago Kivu. Ainda hoje, diz uma voz over no início do filme, os homens continuam à deriva no lago, dia e noite, procurando a origem da vida. Curiosamente, quem mais aparece no filme, quem protagoniza as entrevistas e fala do assunto com propriedade são os homens, que se orgulham de dominar a prática. Observa-se que, nesses dois filmes, as águas dos rios, lagos, mares e cachoeiras servem como metáfora visual do jorro feminino, reforçando a ideia de uma relação mítica da mulher com a natureza. De todo modo, a ejaculação feminina é tratada como algo exótico. Como observa Diana Torres (2015, p. 14, tradução minha), em seu livro Cono potens, só representam a mulher que ejacula “como elemento circense, como monstro das profundezas marinhas, como objeto de estudo, como raridade de geografias remotas”. No lado oposto da versão mítica e sagrada da ejaculação feminina, está a sua negação ou (o que dá no mesmo) sua classificação como urina. Em 2002, o Conselho Britânico para a Classificação de Filmes declarou que o líquido que as mulheres expulsam durante o sexo era urina e que qualquer representação fílmica disso, sendo caracterizada como escatologia, não seria aprovada (TORRES, 2015, p. 113). Ou seja, o pornô não podia mais mostrar a ejaculação feminina. Em 2002, os médicos consultados pelo Conselho Britânico para a Classificação de Filmes persistiam, portanto, na negação dessa experiência. A dicotomia entre o pouco interesse científico devotado à ejaculação feminina e a básica aceitação de sua contraparte masculina tem sido questionada por feministas. A questão não é apenas científica ou erótica, mas diz respeito também à política de gêneros. A partir de minha experiência pessoal com o squirting e em contraposição aos discursos masculinos e machistas sobre a sexualidade feminina, tento pensar criticamente essas imagens e o silenciamento científico sobre o tema. Nesse sentido, proponho um videoensaio, que funciona a um só tempo como um lamento e uma intervenção propositiva. Lamenta ainda ter de abordar a pornografia mainstream e o machismo científico para falar da sexualidade feminina. Propõe que, nós, mulheres, tomemos as rédeas do discurso, falando mais e mais abertamente de nossos prazeres, e nos nossos próprios termos. |
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Bibliografia | CORRIGAN, Timothy. O filme-ensaio: desde Montaigne e depois de Marker. Campinas, SP: Papirus, 2015. |