ISBN: 978-65-86495-01-0
Título | Como dar close na precariedade: o cinema dândi-periférico de Sosha |
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Autor | Pedro Pinheiro Neves |
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Resumo Expandido | Com orçamento zero e contando apenas com a ajuda de amiga/os e câmeras de celular, o multiartista recifense Sosha já realizou sete curtas-metragens, todos disponibilizados gratuitamente no YouTube. Apesar da precariedade da produção, em seus filmes a cidade – seja Recife, Rio de Janeiro ou Brasília – se transforma num glamoroso cenário de editorial de moda, onde personagens fabulosas desfilam ao som de uma trilha internacional. Negro, gay e oriundo da periferia, Sosha mantém uma relação ambígua tanto com o establishment do cinema autoral pernambucano quanto com movimentos sociais relacionados ao direito à cidade ou organizados a partir da identidade (racial, sexual ou de classe) como eixo central de auto-compreensão e luta política. Criando arte de forma independente, sem buscar inserção nos circuitos profissionais de captação de recursos, produção e circulação cinematográfica, Sosha ainda assim frequenta socialmente a cena artística, com a qual mantém uma relação de distância crítica pautada pela ironia, quando não pelo deboche, tornando visível o sistema implícito de privilégios que estrutura um milieu majoritariamente branco e de classe média. Trabalhando em colaboração com uma rede de jovens LGBT e reservando o protagonismo dos seus filmes quase sempre a mulheres trans e travestis, Sosha tampouco se encaixa com facilidade em qualquer tradição de cinema militante ou abertamente “político”, se por esses termos se entende a tematização de opressões ou a reivindicação explícita de justiça social ou reparações históricas. O trabalho de Sosha dialoga principalmente com as imagens e o imaginário da moda, materializado em desfiles, campanhas publicitárias e editoriais de revistas. Os curtas se apropriam das fantasias glamorosas e, por vezes, perturbadoras da high fashion e as transplantam para cenários periféricos e para corpos não-normativos, não com um intuito paródico ou para marcar a distância entre esses universos, mas, pelo contrário, para reivindicar o pertencimento de locais e corporalidades ditas dissidentes aos mundos de luxo e refinamento da moda. Liberadas das suas funções publicitárias e comerciais, as fantasias da alta moda revelam seu potencial disruptivo e queer, ao colocar em cena formas de beleza mutantes e formas de vida desafiadoras de valores produtivistas e utilitários. Este trabalho analisa os filmes de Sosha como atualizações da figura do dândi – que o próprio artista encarna em sua vida -, entendido como um sistema de poses e códigos filtrados por uma sensibilidade estetizante, irônica e ambígua, destinados a inverter as relações entre frivolidade e seriedade, essência e aparência, autenticidade e afetação, privilegiando uma forma de estar-no-mundo pautada pela elegância e pelo refinamento. Se o dandismo é comumente pensado como fenômeno da alta sociedade, expressão rarefeita de um estilo de vida indolente e endinheirado, ele é também, em sua origem, o produto e expressão de uma sociedade em transformação, em que a posição social não é dada de antemão por títulos e sobrenomes, mas é móvel e escorregadia, podendo ser galgada com um esforço de autoinvenção, um senso impecável de estilo e uma dignidade pessoal a toda prova. Desafiando valores aristocráticos, o dandismo tampouco se pauta em uma ética burguesa de trabalho, empreendedorismo capitalista, inovação ou criação transcendente – nem mesmo artística. A arte do dândi é a moldagem do seu próprio corpo, da sua figura e sua pessoa em uma criatura extraordinária. Os filmes de Sosha encarnam um paradoxo: são exercícios de elitismo democrático, de uma superioridade aristocrática a princípio não vedada a ninguém por motivos mesquinhos como fortuna ou pedigree. Como dândi, Sosha afirma seu direito de pertencimento a qualquer espaço e sua indiferença em relação às barreiras que se erguem contra aqueles percebidos como indignos. No seu cinema, o luxo, a beleza e o glamour são direitos de qualquer pessoa. |
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Bibliografia | AGAMBEN, G. Beau Brummell ou a apropriação da irrealidade. In Estâncias. Belo Horizonte: UFMG, 2007, p 81-93. |