ISBN: 978-65-86495-01-0
Título | Entre pães e rosas, queremos os dois: revoluções, melancolia e desejo |
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Autor | Mariana Duccini Junqueira da Silva |
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Resumo Expandido | Em comunicação anterior (2018), sublinhamos como o efeito de melancolia presente no enunciado fílmico em “No intenso agora” (J. M. Salles, 2017) obliterava a especificidade de certos acontecimentos históricos, na medida em que os fragmentos imagéticos compilados, que deram forma a experiências coletivas durante os anos 1960, eram então deslocados para o âmbito privado do sujeito enunciador. O intuito de atribuir densidade a memórias particulares remetendo-as ao fluxo da história (ou, simultaneamente, de convocar as imagens da história para fins de uma enunciação solipsista) não apenas desarticulava o teor das investidas revolucionárias, mas também operava uma identificação com as narrativas dos vencedores, em vista da anulação das expectativas de transformação social. Propomos agora uma análise contrastiva do filme de Salles com uma das obras da cineasta Alina Marazzi, “Vogliamo anche le rose” (2007). Também trabalhando com imagens apropriadas, esse documentário compõe um panorama do mesmo período na Itália, ora sob um ponto de vista feminino, ao indagar como as convulsões sociais e o sentido de urgência daqueles anos impactaram os ideais de emancipação e a ruptura de certos tabus entre mulheres de classes privilegiadas, em uma sociedade conformada pela religiosidade católica e pelo conservadorismo dos costumes. Nas primeiras sequências, o recurso da animação denota uma jovem aprumada que desempenha uma “coqueteria” própria aos estereótipos comumente atribuídos ao gênero feminino, condensados no tema da curiosidade frívola (que motivará a dócil personagem a olhar através de uma bola de cristal, na ânsia por especular sobre o futuro). A imagem do porvir não poderia ser mais desconcertante: em contraste com o desenho animado, o live-action mostra uma jovem nua, com os cabelos ao vento, que dança na Piazza Campo dei Fiori. Trata-se de material de arquivo sobre a manifestação de 8 de março em 1972, fortemente marcada por demandas do movimento feminista italiano. O filme, ainda que em retrocesso, aposta em um futuro prenhe de possibilidades e de desejos, afastando-se do fatalismo melancólico de “No intenso agora”. A heterogeneidade dos materiais de arquivo na obra de Marazzi (que conjuga depoimentos, entrevistas, cenas de manifestações e reuniões, propagandas do movimento feminista, imagens amadoras e filmes de família, entre outros) constrói, pela montagem, uma articulação de memórias coletivas que ultrapassa o sentido monovocalizante das narrativas socialmente cristalizadas. Esse exercício expõe as condições discursivas em que as demandas femininas eram frequentemente desqualificadas como disparates ou futilidades – o filme ressignifica esse estatuto, atribuindo-lhe o valor de acontecimento histórico. Ao mesmo turno, dá a ver a dimensão dessas transformações coletivas em vivências singulares, recuperando excertos dos diários de três mulheres: Anita, Teresa e Valentina. Embora o filme apresente, nos créditos finais, a informação de que o material dos diários é proveniente da Fondazione Archivio Diaristico Nazionale Pieve Santo Stefano, não há como se atestar a “autenticidade biográfica” das autoras. Tal dúvida se adensa pelo fato de que, durante a leitura do diário de Anita, há a inserção de uma foto de Luisa Marazzi, mãe da realizadora, que cometeu suicídio aos 33 anos (tema abordado em seu filme anterior, “Un’ora sola ti vorrei”). Ao recrutar os registros sonoros e imagéticos impregnados da força expressiva de uma época, Marazzi torna sensíveis os impasses próprios às obrigações do casamento e da maternidade, à vida do trabalho, à liberação sexual, à indeterminação de um futuro em relação ao qual se ousa demandar o impossível: entre os pães e as rosas, a reivindicação de ambos. Contra o determinismo melancólico, a aposta no desejo – que faz da história algo mais do que uma repetição farsesca. |
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Bibliografia | BENJAMIN, W. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. |