ISBN: 978-65-86495-01-0
Título | Café, canela e transgressão: descolonizando narrativas feministas |
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Autor | Geisa Rodrigues |
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Resumo Expandido | Em outubro de 2018, às vésperas da última eleição para presidente, durante a XII Socine, parti para o centro de Goiânia, para assistir ao filme “Café com canela”(2017). Ao parar antes no Mercado modelo, optei pela caminhada até o cinema e fui prontamente aconselhada a retirar do peito os adesivos de oposição ao candidato Jair Bolsonaro. De fato, o ambiente da cidade, reduto do candidato, naquele momento soava bastante hostil. O gesto de retirar os adesivos, carregados há meses no meu dia a dia, entretanto, soou violento. Ao mesmo tempo, o abandono dos prédios e lojas deixava evidente o impacto de uma crise agravada pelo governo pós-impeachment, apoiado por Bolsonaro. Minha caminhada seguiu carregada de desalento e solidão. Na sala de cinema, quando as luzes se apagaram, eu e os outros poucos espectadores assistimos a uma simulação de filmagens antigas caseiras. Uma festa de aniversário numa sala de uma casa, crianças, amigos e parentes, salgadinhos e refrigerantes sendo servidos, bolo de aniversário e docinhos, presentes, música, conversas trocadas. Assim como a solidão e o confinamento posteriores de Margarida, uma das protagonistas das imagens caseiras, tais imagens contrastavam também com as ruas da cidade que acabara de percorrer. Quando as ruas de Cachoeira de São Félix e a rotina de Violeta começam a ser exibidas, aguça-se ainda mais o contraste. A câmera ora percorre as ruas acompanhando as idas e vindas de Violeta, ora o confinamento de Margarida, em sua dor. Reafirmando o que sugerem Lira e Brandão, a caminhada feminina no cinema latino-americano se alinha às marchas políticas deste século, ao inserir imagens de sobrevivência e reinvenção. De bicicleta e em seus percursos, Violeta dá outro tom à marcha. Quando se reconecta a Margarida e a retira do confinamento, ensina-a a andar de bicicleta, para que possam transitar juntas. Café com Canela é um filme sobre o cotidiano e o afeto entre duas mulheres negras. Num momento de iminência de um governo autoritário, homofóbico, racista e conservador, quando o filme convida o espectador a ” amar a negritude como resistência política” (HOOKS, 2019, P. 63) também lhe oferece uma linha de fuga, num gesto que se aproxima da potência política observada por Bell Hooks, quando afirma que “coletivamente, pessoas negras e nossos aliados somos empoderados quando praticamos o autoamor como uma intervenção revolucionária que mina as práticas de dominação” (2019, p. 63). Uma das protagonistas, Margarida, é professora, e outra, Violeta, sua ex-aluna. Numa das imagens antigas que abrem o filme Violeta aparece criança, sendo ajudada por Margarida a vencer a timidez. O reencontro posterior entre as duas evidencia que o ato de educar para libertar, de acordo com Paulo Freire, está ali como prática. Cada gesto firme de Violeta transborda o ato de “ensinar a transgredir”, passado pela educadora, a exemplo do que propõe Bell Hooks em sua leitura de Freire. Convém destacar também que no filme são privilegiadas as redes pessoais, percorridas nas portas abertas, nas intimidades visitadas, nos diálogos travados e mesmo na disposição horizontal das casas e suas calçadas estreitas ou suprimidas. Em meio aos excessos nas redes sociais e às violências de um período repressivo que já se anunciava, embarquei num fluir feminino libertador. Esta comunicação é portanto, também um ensaio-agradecimento. Compartilho aqui o meu olhar de pesquisadora branca, interessada nas questões de gênero e suas intersecções. Escrevo em primeira pessoa exatamente para pontuar este lugar de fala. Levanto a hipótese de que a estética com perspectiva transgressora afrocentrada de figuração, desvelada nas entrelinhas e na sutileza de Café com Canela, configura hoje uma chave para a descolonização das narrativas, que todas as novas produções audiovisuais brasileiras que se pretendem feministas deveriam apreender. |
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Bibliografia | BÂ, Hampaté A. A Tradição Viva In: VERBO, J-KI: História Geral da África, São Paulo: Ed. Ática, 1987. |