ISBN: 978-65-86495-01-0
Título | Constelação de imagens ardentes: um cinema brasileiro ao redor do fogo |
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Autor | Ana Caroline de Almeida |
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Resumo Expandido | Sequências que se espelham: diante da luz intermitente do fogo, monólogos são construídos entre duas mulheres e entre dois homens. Em um filme, Tremor Iê (2019), de Elena Meirelles e Lívia de Paiva, duas amigas relembram o que aconteceu com elas nas chamadas Jornadas de Junho, em 2013, quando ambas foram pegas pela polícia. Em outro filme, Sete anos em maio (2019), de Affonso Uchôa, dois amigos relembram os processos de tortura e humilhação que cada um viveu também nas mãos da polícia, em ocasiões distintas. Em ambas as cenas, a mesma operação cinematográfica: longos planos-sequências com enquadramentos fechados em cada um desses personagens que, com corpos iluminados pela inconstância da chama do fogo que se põe diante deles, conversam a partir de longos monólogos em falas cujas bordas entre o texto documental e ficcional se diluem. É noite nos dois filmes, afinal, há “uma pilha de gente morta que já tampou até o céu, e é por isso que tá tudo tão escuro”, como diz um dos personagens de Sete anos em maio. Usando essas duas imagens como forças magnéticas que atraem outras sequências do cinema brasileiro contemporâneo em que a presença do fogo se torna elemento central, tanto do ponto de vista plástico quanto do conteúdo subjetivo pelas chamas invocado, este trabalho busca, a partir de um empreendimento constelacional, mover questões sobre a possibilidade de existência de um páthos que atravessa cenas de ardência desse cinema nacional. O fogo que queima tanto as provas da revolução em Branco sai preto fica (2015) quanto o carro-nave-espacial em Era uma vez Brasília (2018), ambos filmes de Adirley Queirós, o fogo como uma possibilidade de reconstrução pessoal no armário queimado de A vizinhança do tigre (2014), do já citado Affonso Uchôa, o fogo que faz a cidade de São Paulo arder em imaginado apocalipse no desfecho de Riocorrente (2013), de Paulo Sacramento, têm em comum não apenas o fato de se demorarem visualmente em cena, como muito particularmente o gesto de apontarem para processos de transformação, pontos de curva dos respectivos personagens que acionam essas brasas. Nas cidades desses filmes, as chamas, em pequena ou grande escala, disparam que tipo de energia? Quando as imagens queimam, o que queima junto com elas? A simbologia do fogo, tão absolutamente crucial a mitologias ocidentais e orientais e tão fundadora da própria condição subjetiva da humanidade, atravessa a cinematografia nacional contemporânea em situações que apontam para uma ardência outra que não apenas àquela associada ao inferno ou, no extremo oposto, a uma purificação. Fala-se então de uma leitura do fogo como um estado de constante alteração e mudança – do ser humano e do mundo por ele habitado – e, nesse sentido, do caráter do vir-a-ser que o fogo assume no pensamento de Heráclito. O arkhé heraclitiano em que “todas as coisas trocam-se a partir do fogo e o fogo a partir de todas as coisas, como do ouro as mercadorias e das mercadorias o ouro” (HERÁCLITO apud MARTINS, 2007) será, portanto, um operador teórico para que se comece a pensar sobre essas sequências do ponto em que elas propõem um caráter de movimento constante de reconstrução e regeneração sobre corpos e mentes. Se utilizando da cosmologia pensada por Heráclito, em que o fogo constitui o próprio lógos, ou seja, que a sua natureza cambiante é um elemento organizador do mundo, pretendo identificar nessas sequências cinematográficas de que forma o fogo atua como um organizador de uma condição política do Brasil dos anos 2010. |
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Bibliografia | DIDI-HUBERMAN, Georges, A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Tradução de Vera Ribeiro, Rio de Janeiro: Contraponto; Museu de Arte do Rio, 2013. |