ISBN: 978-65-86495-01-0
Título | A sobrevivência dos arquivos: materialidades e memória |
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Autor | JOSE CLAUDIO S CASTANHEIRA |
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Resumo Expandido | Recentemente, ao receber o prêmio FIAF 2019, Jean-Luc Godard comentou que lamentava o fim de uma determinada maneira de se ver filmes, relacionada especificamente às mídias físicas: “Hoje, outra perda, na minha opinião, será, de uma certa maneira, o fim dos DVDs. Com o novo... como é chamado, Netflix e tudo mais? … As pessoas usam para assistir a um filme do jeito que querem, e elas não vão mais aos cinemas” (apud DRY, 2019). Essa afirmação traz, embutida, a óbvia e profunda relação que tanto o cinema quanto as demais manifestações artísticas – até este momento – têm com suportes materiais. Não apenas isso, indica que tais suportes têm a capacidade de modelar a fruição da obra e o comportamento dos diferentes públicos. Em outra matéria online (WOOD, 2019), publicada em abril deste ano, a sobrevivência dos arquivos digitais (entre eles imagens, filmes e músicas) é colocada em xeque por conta do apagamento – acidental ou intencional – de informações de milhões de usuários de sites como MySpace, Facebook e Google. Muitos desses arquivos jamais serão recuperados e levam consigo muitos anos de trabalho, pesquisa, memórias etc. Resgatar essas “imagens” significa reavivar não apenas as “obras” em si, mas também os rostos de seus criadores. Como diz Didi-Huberman, a partir de Warburg, “a imagem [...] deveria ser considerada, portanto, numa primeira aproximação, o que sobrevive de uma população de fantasmas.” (DIDI-HUBERMAN, 2013, p. 35). Godard, em sua fala, afirma que o cinema deve ser pensado como arquivo. Tratá-lo assim, materialmente, permitiria que ele pudesse falar de si mesmo e de sua história através de sua própria matéria que seriam os sons e as imagens. O apagamento de arquivos digitais e, mais preocupante, a incapacidade ou a falta de interesse em sua preservação, significa a supressão de vestígios que não interessam politicamente, socialmente ou ideologicamente. Principalmente, essa ação abre caminho para a reconstrução desses vestígios e consequente reordenação política do cotidiano. O ethos digital proclama como algumas de suas virtudes a permanência através de cópias sempre idênticas, a infalibilidade e a uniformidade. As cópias analógicas, inversamente, são sempre distintas. A matéria, transgressora e opaca, não contribuiria, em tese, para a proliferação das imagens digitais e, portanto, não interferiria negativamente em sua sobrevivência. O arquivo físico, para Godard, é múltiplo e não-uniforme. Justamente por isso, ele tem o poder de falar do cinema com mais propriedade. Ele demanda um trabalho árduo de preservação e de pesquisa ao mesmo tempo que arquivos digitais reconhecidamente ofereçam uma exploração mais rápida e eficiente. Bases de dados são vendidas como repositórios inesgotáveis de arquivos, catalogados e acessados com facilidade. Contudo, em um modelo um tanto distinto das práticas piratas de décadas atrás, o caráter colonialista e hegemônico dos arquivos disponibilizados online acentua-se a cada dia. A diversidade de vozes esconde-se em poucas redes que estão sempre sob a ameaça de serem apagadas ou em suportes físicos que ainda preservam alguns dos conteúdos que não podem ser vistos por streaming. Os colecionadores (museus, cinematecas, arquivos públicos), responsáveis pela guarda e organização das imagens em sua forma material, exercem o papel de arcontes. Mais do que a proteção, a eles cabe a exposição e interpretação dos arquivos. Este trabalho procura discutir a dimensão material da experiência cinematográfica não apenas como condicionadora de práticas e afetos, mas também como perpetuadora de uma memória material das coisas. Propõe-se a memória como um registro nos corpos da existência das coisas, uma afetação em que cada um dos elementos guarda uma parcela do outro. O espaço físico – como a sala de cinema – é o local em que corpos entram em choque e onde se produzem tais marcas. Vestígios materiais, ainda que gastos e decadentes, conservam essa memória e são capazes de reviver fantasmas. |
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Bibliografia | DERRIDA, J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. |