ISBN: 978-65-86495-01-0
Título | O Jogo de Máscaras em Que Bom Te Ver Viva (1989) |
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Autor | Raquel Valadares de Campos |
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Resumo Expandido | Considerando que documentário, assim como autobiografia, é um modo de leitura (DE MAN, 1986; ODIN, 2012; SOBCHACK, 1999) - que ocorre quando o espectador enxerga, através das personagens e histórias da ficção, seus ecos existenciais e referentes reais – pode-se identificar na personagem fictícia interpretada por Irene Ravache, no segmento ficcional do documentário Que Bom Te Ver Viva (1989), a pessoa e a história de vida de Lúcia Murat - cineasta brasileira vítima de tortura na Ditadura Civil-Militar Brasileira. Identificar em uma personagem fictícia o eu da cineasta – uma persona que necessariamente carrega marcas do si mesmo da artista (COHEN, 2013) – fomenta o debate sobre autorrepresentação (RASCAROLI, 2012), autoinscrição (RENOV, 2008), encenação de si (WAUGH, 2011) e performatividade (BUTLER, 2015) da cineasta. Reconhecendo que o documentário experimentou uma guinada subjetiva e crise epistemológica próprias quando trouxe o cineasta para o centro da narrativa fílmica, nos chamados documentários performativos e autobiográficos, situaremos o debate sobre testemunho, sobre os limites entre ficção e documentário e sobre a capacidade de produção de conhecimento verificável em Que Bom Te Ver Viva (1989). Focando na construção da personagem alter ego de Lúcia Murat, analisaremos a inscrição da subjetividade e a incorporação do autor na narrativa dessa obra à luz das teorias da performance (COHEN, 2013) e do documentário performativo (SILVA, 2014). A análise conjugará elementos imanentes da obra e paratextos a fim de justificar a ocorrência de momentos autobiográficos em Que Bom Te Ver Viva e de compreender como Murat constrói no filme um self retratável de si mesma, uma persona, com a intenção de positivar o acontecimento relato, de produzir conhecimento incorporado e de transmitir, por meio de seu testemunho, a sua experiência pessoal de vítima e sobrevivente da Ditadura Civil-Militar brasileira. A chave para compreender como Murat performa sua identidade é a própria estrutura dialogal do testemunhho, mesmo que mascarado pela personagem fictícia e incorporado pela atriz Irene Ravache. Dois são os eixos que marcam a estrutura dialogal do filme: a mise-en-scène do segmento ficcional e a narração em off do segmento factual. Desde a terceira cena de seu segmento ficcional, o filme Que Bom Te Ver Viva planta uma percepção que vigora durante todo o filme: que a personagem interpretada por Irene Ravache fala para o espectador mesmo quando fala para si, em uma constante e consistente extrojeção de si mesma. Essa relacionalidade construída com o espectador, por meio do olhar lançado à câmera e por de interpelação direta, complexifica-se ainda mais nos momentos em que se usa o pronome “você” na fala. Especialmente quando o “você” dirigido ao espectador singulariza um destinatário da fala específico, o que ocorre muitas vezes e com destinatários distintos ao longo do filme, impelindo o espectador a assumir múltiplas identidades, como, por exemplo, o seu torturador. Outro elemento da estrutura dialogal do testemunho é a narração em primeira pessoa. Que Bom Te Ver Viva, diferentemente de documentários em primeira pessoa, não é narrado por sua diretora. No segmento factual do filme, a voz da diretora Lúcia Murat é substituída pela voz da atriz Irene Ravache, o que não impede a expressão de reflexividade e a inscrição fílmica da diretora. Contudo, apesar de ser sabido que é Lúcia quem faz as entrevistas, com essa substituição das vozes, o filme leva a crer que é Irene Ravache a diretora e, portanto, entrevistadora, sujeito por detrás das câmeras e enunciadora real do filme, reforçando a concomitância entre o factual e o ficcional e a ambivalência entre cineasta e personagem alter ego. Espera-se, com esta análise, discutir como a performatividade da identidade de Lúcia Murat, enquanto vítima e sobrevivente da repressão, e o seu testemunho agem sobre o espectador, cuja função é receber e acreditar o relato. |
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Bibliografia | BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015 |