ISBN: 978-65-86495-01-0
Título | Filiações monstruosas: corpo e comunidade em As Boas Maneiras |
|
Autor | João Victor de Sousa Cavalcante |
|
Resumo Expandido | O trabalho levanta questionamentos sobre as relações entre corpo e comunidade no longa-metragem brasileiro As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017), no intuito de pensar a figura do monstro como um articulador de projetos de sociabilidade e políticas de subjetivação outras, que não as engendradas sobre noções estruturantes binárias relacionadas a indivíduo e sociedade, ou natureza e cultura. Interessa-nos pensar como, a partir de uma inversão da gramática de gêneros, notadamente o horror, e de uma suspensão de códigos diegéticos institucionalizados, o filme de Rojas e Dutra promove uma cosmologia monstruosa na qual sobrevivem figuras marcadas pelo imperativo do anômalo (DELEUZE & GUATTARI, 2012), e que constroem uma comunidade ao redor de um corpo monstruoso. O longa-metragem traz uma narrativa em duas partes, distintas em termos formais e narrativos, mas costuradas pela personagem Clara, que, na primeira metade do filme, torna-se empregada doméstica de Ana, vinda da elite agrária goiana que foi para São Paulo para concluir uma gravidez indesejada pela família. A relação entre as duas torna-se complexa, misturando estruturas de classe e raça, sentimento de maternidade e amor romântico. A primeira parte do filme termina quando Ana morre ao dar à luz um lobisomem. A sequência dá um salto de nove anos e traz Clara criando o pequeno lobisomem como filho, estabelecendo um ritual mensal de trancar o menino nas noites de lua cheia, construindo uma noção de família que incorpora lógicas heterogêneas. Ao trazer uma crônica social contemporânea, na qual despontam questões ligadas a raça, classe e gênero, As Boas Maneiras elabora uma fabulação sobre um Brasil desigual, no qual camadas sociais distintas não se tocam, ao mesmo tempo em que constrói uma São Paulo imaginada, esvaziada, silenciosa, na qual as relações de comunidade se estabelecem a partir de alianças anacrônicas, como o romance entre Ana e Clara, ou de alianças com o fantástico, como a criação de um lobisomem na periferia de uma metrópole. A crítica social não toma a dianteira da narrativa, mas antes parece localizar-se como um estrato do real, marcada por uma força que se organiza silenciosamente para eclodir em uma catástrofe moralmente conservadora ao final do filme. O trabalho se desdobra sobre as filiações que formam estratégias de uma sociabilidade que bordeja a norma, e que vai ser pulverizada pela força da multidão em uma cena de linchamento iminente. Essa força de uma massa que não é contida convoca outra noção de monstruosidade, marcada pela proliferação (CARROL, 1990), e que denota ao mesmo tempo uma feroz crítica da moral, notadamente a moral brasileira que mistura política e religiosidade de um modo bastante aguerrido. A monstruosidade central do filme, o lobisomem, deixa de ser a ameaça principal ao status vigente na narrativa, e configura-se como um nascimento prodigioso que antecipa a catástrofe coletiva. É a sociedade convencionada que promove a destruição e convoca um comportamento anárquico, dionisíaco, orientado pela fúria. Essa inversão dos elementos do horror torna-se um recurso fílmico sofisticado, que coloca o lugar dos afetos na dimensão de uma mitopolítca, cujas alianças monstruosas abrem espaço para o vislumbre de outras formas de vida, habitantes de heterotopias escondidas dentro da estrutura social visível. Essas realidades heterotópicas, habitadas por mãe e filho anômalos, surgem como fissuras de sobrevivência, linhas de fuga e de resistência do corpo. Nesse sentido, busco pensar uma mitopolítica fílmica que nos indique qual alteridade e quais políticas do corpo são possíveis às figuras humanas marginais: a partir da figura do lobisomem, investigo essas alteridades como alianças monstruosas, estratégias de devir minoritário e resistência política que excedem categorizações dicotômicas, e que encontram no monstruoso possibilidades de desterritorialização e de outras alteridades. |
|
Bibliografia | CARROL, Noël. A filosofia do horror ou os paradoxos do coração. Campinas: Editora Papirus, 1990. |