ISBN: 978-65-86495-01-0
Título | Volto já (Black mirror): poros da pele e fechamento do corpo sintético |
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Autor | Maria Cristina Franco Ferraz |
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Resumo Expandido | O episódio “Volto já” (Be right back) tematiza a problemática da perda e da finitude na cultura ocidental contemporânea. No enredo, um casal vê sua felicidade ser destruída pela morte em um acidente do personagem (Ash, literalmente “cinzas”), que será ressuscitado, tal como uma ciberfênix, no corpo sintético de um andróide, mercadoria adquirida por sua mulher, Martha, para mitigar seu sofrimento. Informações estocadas no computador são utilizadas para a produção de um software que emula Ash. O programa é depois provido de um novo hardware: um corpo sintético feito à imagem e semelhança do morto. Um “corpo” já não mortal ou falível. Para a produção de um novo Ash, renascido das cinzas, elementos orgânicos são utilizados para ativar o inorgânico, vendido para suprir de modo mais eficaz o vazio deixado pela morte. O corpo sintético, idêntico ao original, tem algo de inquietantemente robótico. Em sua condição de andróide algoritmicamente clonado, assemelha-se a Ash, mas sua expressão facial é menos viva, congelada. A pele, macia, lisa, contém linhas e simulacros de poros perceptíveis ao tato. Trata-se de uma pele produzida por mapeamento textural, conforme o programa explica à viúva. Para aprofundar a problemática da perda e da finitude alavancada no episódio, será explorada a concepção de tecnologia em que ele se baseia e de que modo ela lida com tal questão. Remetermos ao conceito de concepção fáustica da tecnociência, presente nos trabalhos do sociólogo português Hermínio Martins. O “fáustico” vincula-se ao horror à viscosidade, às imperfeições, à finitude do orgânico. O episódio de Black Mirror ressalta os avanços da tecnociência e seus limites, no que diz respeito à promessa de superação da contingência e dos sofrimentos humanos. O androide, tecnologia inteligente, não basta para preencher e resolver o vazio deixado pela morte do companheiro, embora tenha sua performance aperfeiçoada em vários sentidos. Seu comportamento é ditado pelo programa que, capaz de aprender, não o provê com a espessura experiencial própria à subjetividade e necessária à efetiva comunicação. Essas duas condições – apenas comportamento, no lugar da vida subjetiva; ausência de rugosidade ou tensão na relação com o outro - se expressam na textura especial de sua pele sintética. Essa pele-teflon (FERRAZ, 2015), produzida por mapeamento textural e protegida de rugas ou de ferimentos, carece da porosidade afetiva que caracteriza a pele humana. Para dimensionar a distância entre a pele sintética do androide e nossa pele, membrana porosa de trocas e comunicação com o mundo, voltaremos às origens gregas da noção de poros. Na mitologia grega, Poros e Eros são figuras ligadas entre si. Remetido à ideia de saída de situações embaraçosas, Poros é filho de Métis (Astúcia); é o expediente, o jeitinho que se encontra como saída para situações complicadas, embaraçosas. Sobre a relação entre Poros e Eros, lembraremos a versão do mito proposta pela sacerdotisa Diotima, no diálogo platônico O banquete (PLATÃO, 2016). Eros seria um ser intermediário entre os deuses e os homens, nascido da união entre Penia (Pobreza) e Poros (Expediente). É fruto da união entre Pobreza e Expediente. Os gregos nos legaram esse parentesco algo clandestino entre Eros e Poros. Se nossa pele é constituída por poros e se é por ela que circulam desejos, o vínculo entre Eros e Poros tem na pele humana sua expressão mais tangível. Para aprofundarmos essa temática, remetermos ao filósofo português José Gil, que tematizou o estatuto paradoxal dessa pele que não apenas habitamos, mas somos. Pensaremos, a seguir, de que modo o bloqueio da porosidade da pele inviabiliza a circulação de Eros tanto em andróides como Ash quanto em corpos hiperconectados ou blindados – dos quais Marta se aproxima no final do episódio. |
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Bibliografia | CRARY, Jonathan. 24/7 – late capitalism and the ends of sleep. Londres/Nova York: Verso, 2013. |