ISBN: 978-65-86495-01-0
Título | Intervenção divina: exílio, olhar em cena, mediação burlesca |
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Autor | Maria Ines Dieuzeide Santos Souza |
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Resumo Expandido | Intervenção divina (2002), o segundo filme da trilogia palestina de Elia Suleiman, conduzirá nossa reflexão neste trabalho. Instiga-nos o modo como se elabora uma passagem do personagem de um espectador-testemunha para um arranjador da cena fílmica por meio de seu olhar – o estabelecimento do olhar como mediação para a experiência do exílio palestino. O longa transcorre, em grande parte, no estacionamento do checkpoint entre Ramalá e Jerusalém, lugar onde se darão encontros silenciosos entre ES (o personagem interpretado pelo próprio diretor) e uma mulher misteriosa, impedida de entrar em Jerusalém. A permanência dos personagens nesse estacionamento, dentro do carro, coloca em evidência dois elementos fundamentais da construção fílmica: a figuração da mediação (a janela) e a encenação do olhar. Ao colocar seu corpo em cena, atuando como personagem que é também cineasta, Suleiman parece duplicar o gesto da mediação, expondo-a. No filme, cineasta e protagonista compartilham do mesmo corpo, do mesmo nome, da mesma ocupação, mas não se deixam identificar plenamente com o narrador construído – o personagem constitui uma espécie de “duplo” do narrador/diretor. Se dizemos de uma instância narradora que se coaduna à experiência/olhar do protagonista, essa experiência é vista de fora, e o próprio filme coloca em cena outros olhares, multiplicando a postura observativa e a ação de olhar. Intervenção divina reverbera, formalmente, a centralidade do gesto de ver, de testemunhar, ao mesmo tempo em que a montagem, a criação dos espaços e a organização temporal afirmam a interposição da mediação e a impossibilidade da elaboração de uma narrativa unívoca e completa, priorizando os fragmentos e marcando a encenação com artifícios burlescos, que desordenam e ressaltam as aleatoriedades do mundo encenado. Propomos então uma análise das operações que colocam em questão o ato de ver, para pensar como o filme todo incorpora, nas suas elaborações formais, um “modo de olhar” que, multiplicado, vai “descentrando” a narrativa. Intervenção divina, mais do que isso, parece indicar a possibilidade de que a própria experiência testemunhada seja atravessada pelo ato de ver, como se o distanciamento permitido ao gesto de elaborar e narrar se desse em cena, no interior e no desenrolar da situação testemunhada. A espectatorialidade dos personagens que testemunham altera o vivido em seu próprio acontecer dramático. O distanciamento não se interpõe apenas a nós, espectadores externos ao filme, mas passa a acontecer dentro da própria cena, que poderia ser modificada a partir, por exemplo, do gesto observativo e perspectivado de ES e da mulher. O gesto de distanciar deixa de ser apenas uma operação fílmica, que poderia “esclarecer” algo para o espectador do cinema, e passa a fazer parte da própria experiência palestina. No cinema de Suleiman, o olhar em cena parece fazer confluir a marca da mediação e a possibilidade de resistência: os jogos de duplicação da espectatorialidade, artifícios que expõem a mediação, são também responsáveis por desestabilizar a própria cena, desordenando-a ou acentuando seu caráter absurdo ou ridículo, duplicando e explicitando a distância que o filme elabora, especialmente pelos artifícios do burlesco. Nossa hipótese é que a recusa da instância narradora em permitir que o espectador estabeleça com o filme uma relação de identificação reverbera a impossibilidade de que os próprios palestinos “pertençam” à cena vista, eles mesmos espectadores de suas vidas bloqueadas na fronteira. A experiência que se testemunha/vive no exílio interno é a da cisão entre um povo, seu território e sua história. O filme propõe uma forma para essa experiência, mas de modo que nós, espectadores, compartilhemos da ruptura, de uma impossibilidade de habitação: a partir da espectatorialidade complexa proposta por Intervenção divina, que se dá à distância, por fragmentos, rupturas e descontinuidades, compartilhamos de uma experiência de vida em exílio. |
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Bibliografia | ABU-LUGHOD, J.L. Palestinians: exiles at home and abroad. Current Sociology 36, n. 2, summer 1988, p. 61–69. |